Por nada deste mundo eu
abandonaria a minha loucura. O que aqui escrevi são coisas que presenciei. Nada
é ficção.
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Ontem não me apeteceu almoçar no
refeitório do meu serviço. Por isso dispus-me, mais cinco colegas de trabalho,
a ir a um restaurante que fica fora do recinto do hospital de malucos, para
termos um encontro com uma frigideira de barro, recheada com macarrão, queijo
derretido e carne.
O edifício onde trabalho, embora
não tenha nada a ver com o hospital, fica dentro dos enormes jardins do
perímetro hospitalar, que precisamos atravessar para chegar ao exterior, e
assim somos obrigados a passar pelos pavilhões onde se encontram internados os
doentes mentais.
A maioria não é perigosa,
sendo-lhes permitido sair das enfermarias e passear cá fora.
Mas atenção, dou-me bem com eles
e eles dão-se bem comigo, conversando como se fosse tão doente como eles e
estivesse internado num daqueles serviços também (não sei porquê, mas sou o
único a quem dispensam este tratamento VIP, provavelmente porque deveria estar
lá internado também, e só não estou porque os médicos ainda não me apanharam).
Voltando outra vez ao que
interessa, a certa altura do percurso, passei por um pavilhão, de onde estavam
a sair cerca de trinta internados (homens e mulheres), acompanhados por alguns
enfermeiros, e cada um trazia um colchão fino de espuma, devidamente enrolado e
preso com umas correias, para poder ser transportado ao ombro. A maior parte
deles arrastava-se vagarosamente, fruto dos verdadeiros cocktails de drogas que
deviam ter ingerido, e nas suas caras transparecia o horizonte azul, que os
seus olhos percorriam através de mim.
As calças e camisas largas do
hospital, os sapatos de lona com solas de sisal, as caras sonhadoras, os olhos
vítreos, as feições congeladas no tempo ou num frasco de calmantes, dava-lhes
um aspecto de zombies desacordados que despertou a minha atenção e curiosidade.
Mantive-me atrás deles durante um bom bocado, observando-os no arrastar dos
pés, nas paragens de dez em dez passos, no retomar da marcha, no ziguezaguear
por entre as árvores, nas curvas de cada caminho.
Formavam um perfeito rebanho a
que não faltavam os cães que os mantinham juntos, evitando que algum se
tresmalhasse. Os enfermeiros desempenhavam esta tarefa na perfeição. Percebi
que iam passar o dia a uma mata qualquer, levando os colchões para dormir uma
sesta à chegada.
Num dado momento apercebi-me, que
naquele rebanho existia um casal. Muito baixos, ele não tinha mais de um metro
e sessenta, ela se tivesse metro e meio era muito. Embora misturados com os
outros, embora vestidos da mesma maneira fria do hospital, distinguiam-se
porque iam de mão dada. Ela andava com dificuldade, ambos cambaleavam, embora
ele menos, e cada passo era um enigma, cada bambolear das ancas, um drama.
Observei-os mais de perto e
assisti à cena mais improvável que poderia imaginar. A certa altura ele parou e
ela imitou-o. Com toda a doçura, ele tirou-lhe o colchão do ombro, colocou-o
sobre o dele, afagou-lhe a face com dois dedos, repetiu o gesto, voltou a
dar-lhe a mão enquanto os olhos de ambos se namoraram, com um brilho que tinha
vida e voltaram a arrastar-se como tinham feito até ali, como todos os outros
que formavam o rebanho.
Era tudo improvável, desnecessário
porque o colchão não pesa mais de cem gramas, porque o andar continuou
hesitante, porque o caminho não encurtou, porque ambos continuaram loucos,
muito mais loucos e felizes do que eu, no seu olhar vazio, fixo num horizonte
azul e distante que me atravessava.
Era tudo tão improvável que me
calou.
(António Amaral)
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