quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Saudavelmente Loucos



Por nada deste mundo eu abandonaria a minha loucura. O que aqui escrevi são coisas que presenciei. Nada é ficção.

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Ontem não me apeteceu almoçar no refeitório do meu serviço. Por isso dispus-me, mais cinco colegas de trabalho, a ir a um restaurante que fica fora do recinto do hospital de malucos, para termos um encontro com uma frigideira de barro, recheada com macarrão, queijo derretido e carne.

O edifício onde trabalho, embora não tenha nada a ver com o hospital, fica dentro dos enormes jardins do perímetro hospitalar, que precisamos atravessar para chegar ao exterior, e assim somos obrigados a passar pelos pavilhões onde se encontram internados os doentes mentais.

A maioria não é perigosa, sendo-lhes permitido sair das enfermarias e passear cá fora.

Mas atenção, dou-me bem com eles e eles dão-se bem comigo, conversando como se fosse tão doente como eles e estivesse internado num daqueles serviços também (não sei porquê, mas sou o único a quem dispensam este tratamento VIP, provavelmente porque deveria estar lá internado também, e só não estou porque os médicos ainda não me apanharam).

Voltando outra vez ao que interessa, a certa altura do percurso, passei por um pavilhão, de onde estavam a sair cerca de trinta internados (homens e mulheres), acompanhados por alguns enfermeiros, e cada um trazia um colchão fino de espuma, devidamente enrolado e preso com umas correias, para poder ser transportado ao ombro. A maior parte deles arrastava-se vagarosamente, fruto dos verdadeiros cocktails de drogas que deviam ter ingerido, e nas suas caras transparecia o horizonte azul, que os seus olhos percorriam através de mim.

As calças e camisas largas do hospital, os sapatos de lona com solas de sisal, as caras sonhadoras, os olhos vítreos, as feições congeladas no tempo ou num frasco de calmantes, dava-lhes um aspecto de zombies desacordados que despertou a minha atenção e curiosidade. Mantive-me atrás deles durante um bom bocado, observando-os no arrastar dos pés, nas paragens de dez em dez passos, no retomar da marcha, no ziguezaguear por entre as árvores, nas curvas de cada caminho.

Formavam um perfeito rebanho a que não faltavam os cães que os mantinham juntos, evitando que algum se tresmalhasse. Os enfermeiros desempenhavam esta tarefa na perfeição. Percebi que iam passar o dia a uma mata qualquer, levando os colchões para dormir uma sesta à chegada.

Num dado momento apercebi-me, que naquele rebanho existia um casal. Muito baixos, ele não tinha mais de um metro e sessenta, ela se tivesse metro e meio era muito. Embora misturados com os outros, embora vestidos da mesma maneira fria do hospital, distinguiam-se porque iam de mão dada. Ela andava com dificuldade, ambos cambaleavam, embora ele menos, e cada passo era um enigma, cada bambolear das ancas, um drama.

Observei-os mais de perto e assisti à cena mais improvável que poderia imaginar. A certa altura ele parou e ela imitou-o. Com toda a doçura, ele tirou-lhe o colchão do ombro, colocou-o sobre o dele, afagou-lhe a face com dois dedos, repetiu o gesto, voltou a dar-lhe a mão enquanto os olhos de ambos se namoraram, com um brilho que tinha vida e voltaram a arrastar-se como tinham feito até ali, como todos os outros que formavam o rebanho.

Era tudo improvável, desnecessário porque o colchão não pesa mais de cem gramas, porque o andar continuou hesitante, porque o caminho não encurtou, porque ambos continuaram loucos, muito mais loucos e felizes do que eu, no seu olhar vazio, fixo num horizonte azul e distante que me atravessava.

Era tudo tão improvável que me calou.

(António Amaral)

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