… não se sente em mais lugar
nenhum …
Toda a planície se estendia sob
aquele sol, sombreada apenas pelas árvores que rareavam até perder de vista, e
a leve vegetação, quase rasteira, não chegaria nunca para a refrescar ou para
servir de abrigo.
O calor fazia subir línguas de ar
ondulante, que tornavam a paisagem meio irreal, meio viva, meio mexida, porque
nada ficava onde estava, subiam os caules, ondulavam os espinhos, subiam e
desciam, voltavam, iam.
Os olhos tinham dificuldade em
ver, em fixar-se, porque sempre qualquer coisa os distraía, os afastava do
ponto antes olhado. Tentei ver o que por ali se escondia, mas não estava
habituado, não sabia bem como olhar, nem sequer o que queria ver. A paisagem
não era minha, de enorme que era, da cor que tinha, do cheiro que se sentia, da
sua imensidão abrasadora e ao mesmo tempo tão fria.
Não vi borboletas, nunca poderiam
voar por ali, derreteriam as asas, ou secas cairiam como folhas queimadas. Não
vi flores, nunca chegariam a cheirar, porque o seu perfume não encontraria a
quem chegar. Não vi aves, nem sequer abutres, porque nem mesmo as aves de
rapina acolheriam tanto espaço de tão plano, de tão pobre, de tão igual.
Senti o cheiro selvagem da
savana, da terra, das pedras, dos trilhos, das humidades, das chuvas, dos
calores imensos, dos frios nocturnos, do pó, do vento, tudo bem misturado
naquele turbilhão que ondulava, e ondulava, e ondulava.
Cheguei aquela poça de água,
aquela que devia ser a única, porque a sede me tinha guiado até lá e
debrucei-me para beber. Vi-me reflectido na sua superfície, como se me olhasse
num espelho. Vi os olhos que não se reconheciam, vi a imagem que não imaginava,
porque como lobo já me esquecera de existir, de me sentir, de me fazer. Bebi e
esperei.
Fiz o que deveria fazer, já que
não havia mais onde beber. Apenas uma poça enorme, de água com estranho sabor,
mas necessária, mas única. Esperei.
Esperei e não tardei a ver outro
lobo, depois as leoas sedentas, as lobas. Tudo se procurava, tudo convergia,
tudo precisava do que tinha encontrado. Cada um pelo seu caminho, cada um com
um passo, cada um com um ritmo. Foram chegando junto do charco que agora
parecia menor, mais seco, menos amigo. Só o sol se mantinha fiel ao seu calor.
Todos beberam, todos se deitaram
a esperar. E esperaram.
Ao longe apareceu uma gazela,
linda e desprotegida, indefesa, completamente cega pelo calor da savana imensa.
Também ela tinha sido atraída pela sensualidade da água, do único charco que
por ali existia. Avançou como já todos tinham feito, passo a passo, devagar,
porque não poderia fazer outra coisa para ali chegar.
Veio, passou por entre as leoas
que apenas ronronaram, atreveu-se e chegou-se às lobas que nem a olharam,
imaginou-se devorada, esquartejada, e avançou mais um pouco, roçando o focinho do
outro lobo e depois o meu. Apenas cheirei a sua juventude e ela continuou até à
água e bebeu. Bebeu sem parar até toda a sede desaparecer, afogando toda a sua
secura.
Levantou a cabeça que rodou sobre
o pescoço esbelto, olhou em redor, admirou os predadores que ali continuavam
ameaçadores. Passou por mim, pelo lobo que me ladeava, pelas lobas, pelas leoas
e continuou por onde tinha vindo, sem compreender como ainda estava viva e
livre.
A gazela não percebera o mistério
da savana, não percebeu as feras matreiras que avistara, que desafiara
encorajada pela tortura da sede.
A gazela não sabia, não poderia
nunca saber, que as leoas não procuravam o seu sangue, que a fome que sentiam
não era das suas carnes. A gazela não sabia, nem podia saber, que os lobos e as
lobas, não a queriam esquartejar, dilacerar com os seus dentes afiados e pontiagudos
porque a fome que sentiam não se contentava com o quebrar dos ossos de outros
que não fossem os seus.
A gazela não sabia que o que os
havia juntado era outra fome, outra emoção. Naquela savana imensa, ouvia-se o
grito da solidão, o silêncio dos tempos perdidos, das lutas pela conquista,
Naquela savana cheirava a sangue de outras feridas, não do corpo, de cicatrizes
que não se mostram de tão íntimas que são.
Naquela savana, aqueles
predadores, fartos de caçar, cansados de correr e de lutar pelos seus desejos,
pelos seus sonhos, apenas procuravam descansar, retemperar forças, unir as suas
diferenças, encontrar quem os compreendesse, matar a solidão das matilhas
desfeitas, de amores inacabados. Os predadores procuravam-se, estudavam-se,
ajudavam-se como se velhos amigos fossem, porque assim se tornaram ao cruzar
seus caminhos.
A gazela não podia entender, que
mesmo os leões que não se viam, estavam ali bem presentes, vivendo em cada leoa
que os alimentava dentro de si.
A gazela não podia entender o
mistério da savana, que amolece as bestas mais enraivecidas, que as adormece
como meninos, que as queima e inflama em enormes paixões, impossíveis de sentir
noutro lugar, por mais fresco e mais belo que seja, porque estes amores, estas
emoções, esta sede, não se sente em mais lugar nenhum que não seja este onde
estou.
(10.03.2013)
1 comentário:
Há gazelas com sorte! Reconheci-nos a todos nesta savana tão nossa. VV
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