A M I G A

Prometi que escrevia aquele texto de outra maneira, disse que não sabia quando, mas encontrei esta fotografia e não resisti. Foi isto que me disseste, não foi? Este é para ti.




O alazão negro

Envolto numa enorme nuvem de poeira, o bravo alazão negro, saltava no ar, rodopiava feito louco, enquanto os cascos desferrados remexiam o cascalho do chão. Enquanto isso, olhava-o, admirava a sua bravura, toda aquela energia, a força desmedida, o grito no relinchar desafiador que me lançava, como que a querer medir forças, derrotar-me.

Tinha os olhos raiados de sangue, arqueava o pescoço, os cascos dianteiros cortavam o ar como sabres afiados enquanto a esvoaçante crina negra lhe emprestava um perfil de dragão.

Se as suas ventas cuspissem fumo e fogo, então a imagem seria perfeita, e o seu aspecto medonho e ameaçador ressaltaria da autêntica fera que me enfrentava. Mas mesmo assim, continuava ali, insinuantemente belo, tal como o perigo de uma tempestade tropical ou de um furacão.

Tanto desafiou, tanto bailou diante de mim, ostentando toda a sua elegância e beleza, que se tornou irrecusável, pelo perigo que representava, pela enorme força, pelo mistério que o seu olhar envolvia, pela espuma que assomava como fogo nos cantos da boca.

Peguei na corda branca e armei o laço. Quando me aproximei, a raiva piorou, os saltos tornaram-se maiores, enquanto a baba cuspia e o suor tudo salpicava. Era uma autêntica fera, mas toda a fúria conseguia que maior fosse a sua beleza, mais elegante o seu corpo, mais sensuais os seus movimentos. Não havia dúvidas, ele não me queria.

Aproveitei um momento, em que por puro descuido, junto do meu braço passou. O laço de nó corredio, abraçou o pescoço negro, e logo abaixo da cabeça se fixou, como garra de pantera que caça uma presa.

Estiquei a corda, o laço apertou mais, e mesmo com menos ar para respirar continuou. Deu um enorme salto, e a corda enrolada no meu pulso, içou-me no ar. Senti o chão faltar debaixo de mim e, durante um breve segundo pensei – “Já morri!”. Mas não, ainda não tinha chegado a minha hora, mas o combate prometia, a força enorme que demonstrava, a ira, toda a raiva de sentir a liberdade ameaçada, redobravam os seus esforços para se libertar, para me destruir.

Mas foi leal, não usou nenhum truque, e respondi igual. Corri ao seu lado, volteei no ar e de um salto, consegui alcançar o dorso nu, suado e escorregadio. A corda abraçava-me o pulso esquerdo enquanto a mão direita segurava a crina. As pernas transformaram-se em tenazes, enquanto os pés lhe espicaçavam o ventre.

Correu, correu, levando-me, arrastando-me, envolto numa imensa nuvem de pó. Os seus pinotes, as correrias em que mudava abruptamente de direcção, mostravam bem o quanto me queria fora dali. Mas não conseguiu, não foi capaz, começou a abrandar, a acalmar.

Comecei a afagar-lhe o pescoço, beijei-lhe as orelhas, passei-lhe as mãos pelos olhos. Foi cedendo até aceitar, o galope passou a trote, até que finalmente parou. Desci, coloquei-me a seu lado para que me visse, olhou-me nos olhos, e esse olhar atingiu o que queria, e o laço alarguei puxando-o pelas orelhas. Mas não fugiu, ficou ali parado.

Olhei-o, era meu, estava dominado.

Mas eu não podia, não era capaz… não depois daquela luta, não depois de tanta pureza, não podia destruir, roubar o brilho daqueles olhos. Por isso o libertara.

Afaguei-lhe o focinho. Dei-lhe uma leve palmada no quadril traseiro. O enorme alazão preto afastou-se num elegante galope. Depois parou, voltou-se para mim e as patas dianteiras dobradas erguem bem alto, acompanhando o gesto com um estridente relinchar.

Acenei-lhe e nunca mais o vi.

Ele quis, eu também.


E tu disseste: 

Merda, arrasaste-me! Fui engolida pela precisão e pela identificação!!!!

Tu assustas homem! Como podes escrever por mim aquilo que só não escrevo assim por não saber escrever tão bem? Como topaste tão bem o alazão?

O Alazão Negro – Sem querer



Eu sei que prometi, eu sei que disse:

“Então toda a fúria cresceu em mim, explodiu como enorme rio de lava que tudo incendeia. Senti-a rolar cá dentro, mastigar as minhas entranhas, atropelar princípios, sonhos, esperanças. A ingratidão, a indiferença, feriam-me. Porque raio o libertara se não passava de um alazão negro, igual a tantos outros, belo como tantos outros, apetecível como tantos outros. Decidi. Nunca mais voltaria ali.”

Sei que sorri quando a tua mão poisou no meu ombro e disseste “Vens querido?”, sei que aceitei a mão, segui a mão que me oferecias, mas não consegui, não aguentei este fogo que me consumia, a dúvida que ficou a queimar-me por dentro, porque por dentro não queria acreditar, imaginei que não fosse possível, que me enganara, que a certeza que tive com toda a certeza, aquela que ofendera os meus olhos, afinal era apenas engano despeitado, um curto momento enganado na poeira do terreiro.

E voltei aqui. O chão continuava igual. Tantas pegadas desenhadas no pó que se acumulava, algumas sumidas, outras misturadas, pisadas, repisadas, as que deixara nas correrias que enfrentei, algumas permaneciam ainda ali, mas mesmo que se perdessem, que o vento as apagasse, tinha-as gravadas dentro do peito. O bosque continuava alinhado num dos lados do horizonte, verde de copas altas e frondosas, com sombras que se confundiam com ilusões, e tantos olhares perdidos nos seus troncos.

A pedra onde me sentava, também ficara ali, firme no lugar em que a deixara. Aproximei-me para me sentar, como sempre fazia quando chegava àquele lugar. Mas mais uma vez a pedra não estava sozinha. Avistei aquele negro que tão bem conhecia. O Lobo estava ali deitado, como se me esperasse, mesmo sem saber. Mas na verdade mal se via. Sentei-me, sobre a pedra que escaldava.

O alazão negro, que tanto amava, apareceu. O seu galope ritmado atingiu-me no peito como se me espezinhasse. Senti o coração apertar, mordido pelos dentes que nem se dignaram relinchar. Estava sozinho, vinha sozinho, não trazia a égua branca, não trazia nada, apenas aquele pelo luzidio, húmido de suores da cavalgada, de trotes, de galopes, das fêmeas, da fêmea que faltava.

Levantei-me, na mão o laço de corda amarelecida ganhou forma, cresceu, fez-se mão que rodopiava, preparada para prender, preparada para envolver aquele pescoço altivo que a bela cabeça sustentava. Passou por mim a trote, já nem corria e, a crina roçou o laço que tanto temia, sem o ver, sem se importar, sem sequer olhar. Não se esquivou, não se desviou, não tremeu, nem sequer me empurrou.

Passou por mim, pela pedra, pelo Lobo que nem viu, o Lobo que dormitava e o ignorou, porque já sabia, já persentia, com os olhos transparentes que tudo olhavam, escutando todos os silêncios que ecoavam. Passou por mim e fugiu.

Então o Lobo levantou-se como se ouvisse os meus pensamentos – “"Sabes?... Mesmo eu amando-te...um dia também tu podes ficar sozinho..." – porque era como se o pensasse em voz alta, como se me quisesse convencer de alguma coisa, como se aquela minha inépcia para o prender fosse um defeito, embora não o fosse, mas que me roía, que me roía.

A cabeça do Lobo roçou-me, senti que me animava, que me dizia que a verdadeira força estava em mim, que o que havia já decidido era o caminho, mesmo quando me roía, mesmo quando me doía.

Olhei o Lobo que tinha olhos transparentes, senti o Lobo que tinha olhos transparentes. Na minha mente, palavra a palavra, foi-se formando uma frase, a princípio sem me aperceber, depois mais clara, depois a transbordar, até que a frase se gritou nos meus ouvidos.

“Tudo é uma questão de hábito, primeiro ESTRANHA-SE, depois ENTRANHA-SE.”, E a frase fazia todo o sentido.

“O Alazão sentiu”




Sim, voltei novamente aqui, à planície poeirenta, onde o bosque ao fundo, junta o verde à cor da terra, onde as sombras contrastam com o sol que queima o descampado seco, tornando eternas as pegadas de tantos cascos que já a pisaram. Voltei, embora tivesse prometido não o fazer, embora me doa quando o faço, ferida pelas recordações de cada momento, que aquela terra dura e seca, guarda por entre cada pegada do Alazão Negro que um dia libertei, soltando o laço que em torno do seu pescoço passara.

Voltei, porque é sempre difícil ignorar os sinais, porque na verdade o amor não morre assim, apenas porque o ignoramos ou fechamos os olhos dentro de nós.

Mas desta vez mordi os lábios e calei o grito, assisti de longe ao tropel do meu cavalo negro, vaidoso, enquanto se pavoneava junto com outros machos, que por serem iguais não queriam saber se era belo ou apenas mais um. Desta vez senti-me atingida pela ostentação com que o fazia, porque o pó que lhe cobria o dorso negro era igual, ao que os outros ostentavam, o barulho dos cascos em nada se distinguia, a crina esvoaçava ao vento como as outras esvoaçavam.

Afinal o que o distinguia, era apenas o que eu sentia.

Subitamente estremeci; senti outro par de olhos que me observavam, outros olhos calados que tudo viam, num silêncio que me habituara a conhecer, lendo os meus segredos, todos aqueles que queria esconder.

O Lobo estava ali, como sempre deitado na sombra da pedra onde me sentava, aproveitando o fresco da rocha, olhando-me, olhando-nos, e do brilho dos olhos nada transparecia, porque o Lobo apenas via, observava e calava tudo o que sabia.

Então vi, senti, que o grito não podia calar, neguei o grito a quem o pedia, afaguei outros Alazões que conhecia, semeei onde sabia que não cresceria. Ignorei o sentir que não queria, senti-me renascer, mesmo pensando que morreria, não foi uma batalha nem uma grande vitória, mas fez-se paz e senti alegria.

O Alazão Negro por ali ficou. Afaguei o Lobo que me provocou e adormeci porque o Lobo tinha olhos transparentes.

24.01,2014

10 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Eu não sou ninguém disse...

Está resolvido amiga....

Obrigado por vires aqui!

Eu é que me sinto honrado com a tua presença e amizade!

Volta sempre.....

Anónimo disse...

ABOSLUTAMENTE FABULOSO!

Afinal a perfeição existe.

Um dos mais belos e mais bem conseguidos "momentos" do que tenho lido.

Um texto soberbo, intenso, irrepreensível...

A fotografia é igualmente bela e propositada para acompanhar o tema e "dedicatória" do texto.

Sentenciado ao infindável... só um bom escritor e observador e uma excelente Amiga poderiam resultar num texto com esta categoria.

MAGNÍFICO!

Bjos
DD

Eu não sou ninguém disse...

Não fiz nada demais, foi a VV que me "ditou" o texto mesmo sem dar por isso. São aqueles "silêncios" que falam.

Estás a ver DD porque é que os olhos só nos causam problemas?

Mas obrigado na mesma pelo teu delicioso comentário (não te esqueças de agradecer à VV).

Beijos para ti. És LINDA!

Anónimo disse...

Então tu e a VV têm de "escrever" mais vezes.

É verdade... os olhos não mentem ... e quando sabemos ler nas entrelinhas e nos silencios ..... uiiii

É uma belíssima homenagem este texto dedicado à nossa muy querida e Amiga VV. Ela merece tudo.

Beijos
DD

Eu não sou ninguém disse...

O que posso dizer mais DD...

apenas obrigado

Anónimo disse...

Estarrecida, assustada em bom! Que te sintas abraçado, TU NÃÕ ÉS UM ALGUÉM QUALQUER. A tua amiga tem muita sorte por ter um lobo assim na sua vida.

teca disse...

Lendo seu texto, vc me lembrou um amigo que mora longe temos um oceano nos separando, mas nossa sintonia e gostosa lindo texto arrasou.

Anónimo disse...

sem palavras ...e agora?
fiquei KO!! fantástico parabéns
quase que fico sem pulmão ...
já passou :)

Maria disse...

É uma delícia ler-te MESTRE!!!
PARABÉNS!!!