quarta-feira, 7 de junho de 2017

O Tuaregue - Memórias



Faz tempo que não escrevo sobre o Tuaregue. A última vez que o fiz, foi em Setembro de 2013, mas também não admira, esquecendo as cavalgadas solitárias, as lutas, as tempestades de areia, que mais há a dizer sobre um homem, um cavalo negro, um turbante azul e uma espada. Muito pouco, mesmo muito pouco. Mas hoje lembrei-me, lembrei-me dele e do mistério que o rodeia, e que o envolve de uma auréola quase sobrenatural.

O Tuaregue - Memórias

O sol já procurava o horizonte, entardecia lentamente, aproximava-se o fim de mais um dia cansativo, escaldante, tórrido. O alazão negro estava coberto de pó, cor da areia que pisara todo o dia, preso pelo suor que ainda lhe escorria pelo dorso. Mas a sua vontade não abrandara apesar da sede que lhe consumia as forças, lealdade que devia, que alimentava, que ajudava.

O cavaleiro que transportava, continuava firme. Sentia-lhe os joelhos que roçavam no seu pelo, a ponta da bota de couro enrolado, o frio da bainha de aço da espada que lhe tocava o quadril, pendurada da cintura do homem de turbante azul.

Finalmente o horizonte e as dunas engoliram o sol fervente e o calor dissipou-se, murchou, desapareceu engolido pelo vento que se levantou, gelando a pele que antes derretia.

Nada era novo para o Tuaregue. Quantas vezes passara por isto. O deserto era assim, uma vez fornalha no dia, gelado na noite quando nada se via. O alazão também não estranhou quando se sentiu aliviado do peso que carregara naquela caminhada tão cedo encetada.

O Tuaregue tinha desmontado de um salto e libertara-o do arreio. Depois desapertou-lhe a cilha e aliviou-o do peso da sela. Enrolou a manta que lhe protegia o dorso e começou a escová-lo com a escova que retirara do saco que sempre o acompanhava, partilhou com ele a água que tanto desejava.

Rapidamente juntou pequenos paus que o vento trouxera, pedaços de cactos secos, ervas, e a fogueira acendeu-se, espalhando o ténue calor que mal abalava o frio que já se instalara. Puxou a sela para junto do fogo e sentou-se sobre ela. Do saco de couro retirou um pedaço de carne seca que espetou num pau e colocou junto das brasas.

Enquanto esperava pelo banquete que preparava, retirou da bainha de aço a espada. A lâmina faiscou no chispar do fogo, mas pareceu-lhe suja. Limpou-a com a tira de couro, como fazia sempre. Depois com o sílex afagou-lhe os gumes, lentamente, com a suavidade de um amante, com toda a ternura de quem agradece a vida que permanece. E a lâmina cantava, gemia no toque do sílex que a afagava.

Mas o Tuaregue não estava ali. Sim, na verdade o corpo estava, mas os olhos ficavam para além do horizonte perdido na escuridão imensa, escondida muito para além do fogo que o aquecia. Os olhos viam o que o pensamento alinhava, recordações de tempos perdidos no próprio tempo.

A mão apertou o punho da espada, apertou, apertou enquanto aquela figura atarracada se desenhava na sua mente. Aquele homem dissera-lhe um dia:

“As tuas mãos são armas poderosas, armas que nunca te abandonarão, se forem fortes, se as treinares, se acreditares”. As dele eram assim, verdadeiras tenazes que apertavam, trituravam, partiam tudo que alcançavam. Nada as abria, o que seguravam nunca mais fugiria e só se quisesse se libertaria.

As minhas aprenderam, foram obrigadas a endurecer, e cada dedo tornou-se tenaz, mola, turquês, o punho martelo, bigorna, alicate de ferreiro. Nasceram como armas, abraçaram o punho da espada, as tiras de couro que eram guias do alazão. Eram armas que já usara, mas eram também plumas que sabiam acariciar amores, suavemente, feitas bolas de macio algodão.

Aquele homem atarracado com mãos de aço era seu pai. Fazia tempo que desaparecera e se tinha juntado os grãos escaldantes de areia do deserto. Enquanto juntos, sempre discordavam, na casmurrice que lhes alimentava a força, no prazer que tinham no desafio,  no esgrimir das mentes.

Lembrou-se da égua parda que foi obrigado a montar era ainda um criança a preparar-se para a adolescência que se avizinhava, e onde ensaiou os primeiros trotes e galopes, aos ritmos que aquele homem atarracado de mãos de aço, o obrigava a cavalgar.

As distâncias foram aumentando, o deserto não findava, os perigos, o calor escaldante, as noites... ensinavam-no. Em cada ano, crescia dez, vivia-os em correrias, subindo dunas, explorando oásis, sobrevivendo a cada sede, a cada emboscada, a cada tempestade.

Aos dezassete anos via tudo com outros olhos, lutava, aperfeiçoava, vencia medos e segredos, cavalgava, procurava caminhos, afagava a égua parda, partilhava a água escassa, enrolava o turbante azul, afiava os gumes da espada que o protegia.

Foi aos dezassete anos que a conheceu...

(António Amaral)

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