quinta-feira, 6 de abril de 2017

Os Alazões, a Voz e o Lobo (por vezes escrevo no feminino)

Imagem encontrada na internet sem reserva de direitos


Tinha esquecido os óculos azuis de lentes escuras, aqueles que me protegiam os olhos, que tantas vezes ocultavam o vermelho deixado pela lágrima.

O sol estava a meia altura, mas o calor não abrandava, nem o brilho que me feria e obrigava a manter as pálpebras semicerradas. Tropecei várias vezes, algumas até na sombra das pedras que me pareciam reais e enormes.

Nem sei como me abeirei da pedra grande que tantas vezes me servira já de descanso, equilibrada no salto que me fazia maior e torneava a perna. Mas cheguei, inteira, com explosões cintilantes dentro dos olhos, com o sabor da poeira a inundar-me a boca, com uma gota de suor a escorrer pelo queixo.

Sentei-me e fechei os olhos para descansar daquele brilho intenso, sem sequer conseguir enxergar o bosque verde que se desenhava ao fundo e se confundia com o horizonte ondulante. Mas não resultou.

O brilho parecia não desaparecer, continuava ali, forte a ferir-me a alma, a iluminar tudo o que agora deveriam ser trevas e vazio.

Pelo meio da luz ofuscante começaram a aparecer sombras, e cada sombra assomou-me, remexeu-me, transformou-se, tocou-me. Vi o Alazão que quase tinha sido meu, outro que quase domara e libertara, a incerteza, o desespero, a vaidade, a vontade e, sempre, junto a cada sombra… a Voz, a Voz que tão bem conhecia e sempre me chamava ao fim de cada sol.

Senti ali a minha história, dia a dia, hora a hora, nas correrias, nas incertezas, nas alegrias, nas dúvidas, nas tristezas. Senti-me abandonada e depois encontrada, senti-me forte e depois amaldiçoada, senti as certezas e depois como estava errada.

Queria abrir os olhos, contrariar aquela maldita luz, acender as trevas para apagar todas as sombras mas não conseguia. Estava ali presa, com os saltos semienterrados na poeira repisada, meia sentada na pedra grande, sem ver o horizonte ondulante, sem conseguir enxergar o bosque verde que tudo escondia.

Então um roçar peludo e áspero abanou a mão que me pendia e os olhos abriram-se-me. Lembrei-me então que me faltava aquela força, não o tinha visto, não o persentira, mas mais uma vez tinha chegado pé-ante-pé, como uma nuvem, como um cheiro, como uma gota de orvalho que escorre de uma madrugada e lá estava, negro, negro como sempre fora, o Lobo.

Levantei-me. Ia falar-lhe, dizer-lhe qualquer coisa, talvez até a verdade que me doía… estendi a mão mas não o alcancei. Estava agora dois metros à minha frente, de costas voltadas, esperando.

Quando comecei a andar na sua direcção, levantou-se e foi mantendo a distancia que nos separava, calmamente, passo a passo, centímetro a centímetro. Não estava a perceber, onde me levava.

No chão que pisava antes de mim, começou a desenhar-se um caminho onde tudo era mais duro, onde as covas e as pedras abundavam e as silvas desenhavam o trilho e cada curva. A erva foi ficando mais alta, mais densa, mais espinhosa.

Depois de uma curva parou. Vi como se sentara no chão poeirento. Olhei mais além e vi que o caminho que seguíamos se partia em dois, mais estreitos, um que subia…

Ficou ali parado. Nem me olhou.

Subitamente levantou-se, correu para um dos caminhos levantando uma nuvem de fina poeira sempre sem olhar para trás, e desapareceu na curva que se desenhava mais adiante.

Fiquei ali, parada, pregada ao chão, olhando o pó que a brisa mantinha no seu voo, vendo o Lobo que desaparecia na curva de um dos caminhos, lembrando os Alazões e a Voz que sempre me chamava no terminar de cada sol.

O Lobo sempre me ajudava. O Lobo tinha-me dito tudo o que precisava ser dito no meio do seu próprio silêncio.

Mas ainda era cedo. Ainda não estava preparada, talvez um dia.

Voltei pelo mesmo caminho, ignorei a encruzilhada, não senti o brilho que me cegara, passei pela pedra vazia. Ao longe ouvi a Voz…

Vamos?!


(António Amaral)

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