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Tinha esquecido os óculos azuis
de lentes escuras, aqueles que me protegiam os olhos, que tantas vezes
ocultavam o vermelho deixado pela lágrima.
O sol estava a meia altura, mas o
calor não abrandava, nem o brilho que me feria e obrigava a manter as pálpebras
semicerradas. Tropecei várias vezes, algumas até na sombra das pedras que me
pareciam reais e enormes.
Nem sei como me abeirei da pedra
grande que tantas vezes me servira já de descanso, equilibrada no salto que me
fazia maior e torneava a perna. Mas cheguei, inteira, com explosões cintilantes
dentro dos olhos, com o sabor da poeira a inundar-me a boca, com uma gota de
suor a escorrer pelo queixo.
Sentei-me e fechei os olhos para
descansar daquele brilho intenso, sem sequer conseguir enxergar o bosque verde
que se desenhava ao fundo e se confundia com o horizonte ondulante. Mas não
resultou.
O brilho parecia não desaparecer,
continuava ali, forte a ferir-me a alma, a iluminar tudo o que agora deveriam
ser trevas e vazio.
Pelo meio da luz ofuscante
começaram a aparecer sombras, e cada sombra assomou-me, remexeu-me, transformou-se,
tocou-me. Vi o Alazão que quase tinha sido meu, outro que quase domara e
libertara, a incerteza, o desespero, a vaidade, a vontade e, sempre, junto a
cada sombra… a Voz, a Voz que tão bem conhecia e sempre me chamava ao fim de
cada sol.
Senti ali a minha história, dia a
dia, hora a hora, nas correrias, nas incertezas, nas alegrias, nas dúvidas, nas
tristezas. Senti-me abandonada e depois encontrada, senti-me forte e depois
amaldiçoada, senti as certezas e depois como estava errada.
Queria abrir os olhos, contrariar
aquela maldita luz, acender as trevas para apagar todas as sombras mas não
conseguia. Estava ali presa, com os saltos semienterrados na poeira repisada,
meia sentada na pedra grande, sem ver o horizonte ondulante, sem conseguir
enxergar o bosque verde que tudo escondia.
Então um roçar peludo e áspero
abanou a mão que me pendia e os olhos abriram-se-me. Lembrei-me então que me
faltava aquela força, não o tinha visto, não o persentira, mas mais uma vez
tinha chegado pé-ante-pé, como uma nuvem, como um cheiro, como uma gota de
orvalho que escorre de uma madrugada e lá estava, negro, negro como sempre
fora, o Lobo.
Levantei-me. Ia falar-lhe,
dizer-lhe qualquer coisa, talvez até a verdade que me doía… estendi a mão mas
não o alcancei. Estava agora dois metros à minha frente, de costas voltadas,
esperando.
Quando comecei a andar na sua direcção,
levantou-se e foi mantendo a distancia que nos separava, calmamente, passo a
passo, centímetro a centímetro. Não estava a perceber, onde me levava.
No chão que pisava antes de mim,
começou a desenhar-se um caminho onde tudo era mais duro, onde as covas e as
pedras abundavam e as silvas desenhavam o trilho e cada curva. A erva foi
ficando mais alta, mais densa, mais espinhosa.
Depois de uma curva parou. Vi
como se sentara no chão poeirento. Olhei mais além e vi que o caminho que seguíamos
se partia em dois, mais estreitos, um que subia…
Ficou ali parado. Nem me olhou.
Subitamente levantou-se, correu
para um dos caminhos levantando uma nuvem de fina poeira sempre sem olhar para
trás, e desapareceu na curva que se desenhava mais adiante.
Fiquei ali, parada, pregada ao
chão, olhando o pó que a brisa mantinha no seu voo, vendo o Lobo que
desaparecia na curva de um dos caminhos, lembrando os Alazões e a Voz que
sempre me chamava no terminar de cada sol.
O Lobo sempre me ajudava. O Lobo
tinha-me dito tudo o que precisava ser dito no meio do seu próprio silêncio.
Mas ainda era cedo. Ainda não
estava preparada, talvez um dia.
Voltei pelo mesmo caminho,
ignorei a encruzilhada, não senti o brilho que me cegara, passei pela pedra
vazia. Ao longe ouvi a Voz…
Vamos?!
(António Amaral)
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