sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O Alazão Negro – Pó



A tarde estava estranha. Ainda não tinha chegado a hora de partida do calor abrasador, mas a planície não ardia como tantas vezes sentira, mesmo que a imagem ondulasse, que o chão não tivesse amolecido, que as pedras brilhassem debaixo de cada raio e o sol alto iluminasse de vermelho.

O bosque continuava lá, enganando a linha do horizonte, prometendo outras frescuras, apontadas nos verdes dos tufos de folhas, nas sombras escondidas por baixo delas, na água que ninguém veria, mas devia existir por ali.

Nada mexia, toda a poeira continuava pousada no chão, sobre pedras, folhas secas, troncos partidos. As pegadas esculpidas, marcavam os trilhos, as voltas, os saltos da manada, as lutas dos alazões. A pedra que sempre resguardava o Lobo Negro, não abrasava, mas ele lá estava, enquanto nos olhos semicerrados se adivinhava a astúcia que já conhecia.

Aproximei-me, a pedra fez-se assento a que me juntei, o peludo ficou quieto, nenhum pelo estremeceu, o dorso continuou arqueado, a poeira disfarçada de pele que o vestia, mostrava que o ar não se mexia.

Estava ali na esperança de encontrar respostas, de sentir o chamamento que o tropel sempre acordava, de indagar cada arrepio disfarçado, cada calor reconhecido, cada momento desejado, relembrado, prometido.

Dentro dos meus olhos, perfilaram-se os corcéis, alazões de outros ventos, de horas assanhadas, apanhados nos laços da mesma corda que os soltou, dos diálogos entre forças incontidas, do escapar dos perigos das escarpas, das esperas desiludidas, dos cheiros de suores atiçados nas corridas.

Nas pálpebras ecoaram as poeiras levantadas, as éguas partilhadas nas imagens debotadas, os troncos do bosque misterioso, a clareira que apregoava os seus prazeres, o pó vermelho dissipado em meia vida, o cansaço da espera indesejada, todo o tempo revivido para nada.

O Lobo Negro farejava o meu silêncio, conhecia cada poro que me suava, sabia do trilho que me desafiava, respirava passo a passo a correria, ouvia o ar que respirava, cada suspiro, cada fantasia. Ouvi um rosnar surdo, olhei-o, continuava deitado, dos olhos semicerrados nada transparecia, mas pressenti o aviso, encontrei o apoio, salvei cada passo que dera, abri cada dúvida que me queimava, esperei que a chuva viesse, que o vento soprasse, que o sol virasse o bosque, que da poeira nascessem as respostas e se enterrassem as dores.

As cicatrizes que ostentava no dorso, as feridas antigas, saradas de tantas lutas, de enormes caçadas, o olhar matreiro desenhado nas fêmeas que conquistara, que amara e recusara, trocadas por desafios, por perigos enormes, por incertezas de presas apetecíveis, de inimigos mortais… ali estavam tantas respostas, tantas certezas, tantas dúvidas resolvidas.

Na verdade eu tinha encontrado o meu Alazão que se vestira de vermelho, antes que o tempo o roubasse, o outro antes que eu própria libertara do laço, tinha vivido a recusa, esquecido o pó que se dissipou, aproveitado quem me agarrou, gerado flores que se fizeram amores, confessado o Lobo, rodado cada ponteiro para o inverso que era, rolado na escarpa, repintando um prazer, desenhado um caminho que não sabia se queria fazer.

Senti a vertigem do que me fora negado, aceitei a mão que me estava estendida, acendi a fogueira com madeira já ardida, percorri o caminho de costas voltadas.

E agora? Que faço agora? Estou perdida nesta encruzilhada.

Tinha desprezado o aviso do Lobo, rodeados os cuidados que teria, mergulhado na avidez do fruto que antes recusara, presa no momento que entretanto construíra, atada por cada passo dado, por cada segundo congelado, pela segurança do não mudar, pelo saber de tudo com que se pode contar.

Mas mesmo assim tinha arriscado, sem saber, sem prever, sem imaginar o que aconteceria. E os desafios nasceram, e os desafios cresceram, e cada passo, cada avanço, cada risco pisado, cada suor suado, foi encurtando o tempo, exigindo a resposta que não sabia se arriscaria.

E mesmo que não mate, corrói, mesmo que não apague, arrefece, mesmo na vontade, adia.

Eu cada dúvida, nasce um “vale a pena” que não se arrisca, o desconhecido ameaça quebrar degraus, a subida fere as mãos, os olhares começam a esconder-se, as fotografias cinzentas de um passado recordado, esfumam-se.

Falta tudo o que é preciso, tem-se tudo o que se teme. E a coragem? E a vontade? E o sol da noite? E o calor do embate? E a chuva que não se vai? Tenho a certeza que não mudar é mais fácil. Vou esperar e ver.

Lobo, eu ia contar-te, tu sabes. Porque te puseste a adivinhar? Tornaste tudo mais fácil… mas agora fiquei aqui presa, numa planície que os Alazões esqueceu, num bosque que não se mexe, numa clareira que se não mostra, num deserto…

Despertei deste emaranhado, vi o Lobo abrir os olhos, lamber as mandíbulas pontiagudas, sacudir a poeira, abandonar a sombra, farejar o horizonte, dizendo-o vazio.

Percebi que as respostas não estavam ali, nenhum dos alazões nascera para desfazer dúvidas, nem o Lobo lutara para encontrar o caminho da lua. A pedra era apenas descanso, sombra, frescura e um amigo.

As respostas estavam escondidas dentro dos meus tempos.

#2224

1 comentário:

Maria disse...

O Lobo,suas cautelas e avisos...
Parabéns!
Uma delícia...