terça-feira, 28 de junho de 2016

“O Alazão Negro – Cavalgando”



Tinha-me cheia de ideias, de esperanças. Os sonhos que voltavam aos poucos animavam-me. As incertezas foram-se transformando em amanhãs de luz e brisas frescas. Regressei à planície com outros olhos, com outros cheiros. O chão seco, a poeira que se respirava, os cascos impressos por entre a terra seca, continuavam iguais, e ao fundo o bosque… as árvores destoavam realmente de tudo o resto, dançavam, afagavam-se, confundiam-se com frescura que não se enxergava por perto. A pedra e a sua sombra estavam ali, à minha direita, mas a sombra estava vazia, o Lobo Negro não estava lá.

Normalmente sentava-me ali e esperava, ficava ali no meio do tempo esperando o nada que sempre se enchia, do pelo negro coberto de poeira, dos olhos transparentes que me liam e atravessavam, dos rosnares surdos, das coisas que se adivinhavam, do troar dos cascos nas cavalgadas loucas, do assomar da baba no canto das bocas da manada.

Não sei o que me deu, nunca me acontecera tal. Olhei o bosque, aquela pequena floresta verde, a promessa de frescura, a esperança de um saciar de enorme sede antiga, e o apelo tornou-se vontade, as pernas transportaram a ingenuidade para cada passo, e o bosque foi crescendo na sua distância, a mancha tornou-se folhagem, o negro pintou cada tronco, os intervalos abriram-se. Era a primeira vez que me aproximava, não lhe conhecia trilhos nem caminhos, nem pedras, nem armadilhas, muito menos os perigos.

Mas permanecia adormecida, anestesiada por aquela vontade que me ficara de desvendar o que vira vermelho, de cheirar o pó que já não existia, de sentir a liberdade de decidir ir ou ficar, de saborear o desejo de um regresso esquecido, de uma ternura trocada, de um engano reconhecido.

As árvores envolveram-me sem que o notasse, o fresco da folhagem tocou-me na face distraída, o passo tropeçou na falta de caminho desenhado, o sol enfraqueceu zurzido por cada tronco. O torpor daquele imprevisto foi-me acordando lentamente, a floresta começou a rodear-me, o arrepio de cada medo tornou-se mais forte, o abraçar daquela solidão estremeceu cada alicerce que me sustinha. Parei. O chão não se via, os meus pés estavam enterrados num manto vestido de verde-escuro, de castanho, de amarelos sujos, de negros tintos de vermelhos mortos. Não existia caminho, mesmo que a aranha pendurada de um fio invisível, balançada de um peso improvável, indicasse que lá em cima, por entre as copas, estava a vida, a casa, o alimento.

Para trás já não se via a planície de caminhos marcados pelos cascos no seu tropel, nem a pedra, nem o Lobo Negro que hoje não descansava na sua sombra. Isto era o que eu via, o que eu julgava enquanto o desconhecido me tinha guiado para uma frescura verde que nunca me atraíra. Senti um bafo quente, um respirar sussurrado numa astúcia que nunca fora cega, um olhar que me queimava a nuca, que me trespassava. A palavra soou-me na alma como se tivesse devorado o medo – Era o Lobo Negro. Não me seguira, era impossível que o tivesse feito. Estava ali porque me pressentira, porque me adivinhara aquela vontade que conhecia, porque sabia de todos os perigos, porque era um muro, uma sombra, uma força que nunca se recusava.

Estava deitado sobre o manto verde, olhos semicerrados, caninos assomando o lábio arqueado. Eu conhecia aquela pose de vigilância, conhecia o silêncio que tudo dizia. Vi que as duas árvores que o ladeavam deixavam ver um brilho aquoso ondulado por uma brisa suave, iluminado por um raio de sol enviesado, e uma sombra negra reflectida com sinais de vermelho poeirento. Passei pelo Lobo e fui por ali, mais segura, mais afoita. Enfrentei a clareira que se abrira a meus pés, encontrei um outro passado, despi o colete roçado, soltei o cabelo vermelho, assomei a juventude irrequieta, mergulhei no clarão que me feriu os olhos.

De passo em passo, de ternura em ternura, de sopro em sopro, de momento em momento, de chispa em chispa, de tropeço em tropeço, de dor em dor, de sangue em sangue, de cicatriz em cicatriz, de cura em cura, chegou!

Não sei como mesmo que saiba, não quero saber como mesmo que me importe, não quero julgar o caminho mesmo que o percorra, não quero contar o tempo mesmo que acelere, não quero escolher o caminho mesmo que fique parada, não quero escolher a vida mesmo que morra. Não quero!

Esperei, cheguei, descobri, consegui… Estou cavalgando no meu Alazão. A terra é outra, o caminho é outro… O Lobo está sempre ali.



#2213

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