Tinha-me cheia de ideias, de
esperanças. Os sonhos que voltavam aos poucos animavam-me. As incertezas
foram-se transformando em amanhãs de luz e brisas frescas. Regressei à planície
com outros olhos, com outros cheiros. O chão seco, a poeira que se respirava,
os cascos impressos por entre a terra seca, continuavam iguais, e ao fundo o
bosque… as árvores destoavam realmente de tudo o resto, dançavam, afagavam-se,
confundiam-se com frescura que não se enxergava por perto. A pedra e a sua
sombra estavam ali, à minha direita, mas a sombra estava vazia, o Lobo Negro
não estava lá.
Normalmente sentava-me ali e
esperava, ficava ali no meio do tempo esperando o nada que sempre se enchia, do
pelo negro coberto de poeira, dos olhos transparentes que me liam e
atravessavam, dos rosnares surdos, das coisas que se adivinhavam, do troar dos
cascos nas cavalgadas loucas, do assomar da baba no canto das bocas da manada.
Não sei o que me deu, nunca me
acontecera tal. Olhei o bosque, aquela pequena floresta verde, a promessa de
frescura, a esperança de um saciar de enorme sede antiga, e o apelo tornou-se
vontade, as pernas transportaram a ingenuidade para cada passo, e o bosque foi
crescendo na sua distância, a mancha tornou-se folhagem, o negro pintou cada
tronco, os intervalos abriram-se. Era a primeira vez que me aproximava, não lhe
conhecia trilhos nem caminhos, nem pedras, nem armadilhas, muito menos os
perigos.
Mas permanecia adormecida,
anestesiada por aquela vontade que me ficara de desvendar o que vira vermelho,
de cheirar o pó que já não existia, de sentir a liberdade de decidir ir ou
ficar, de saborear o desejo de um regresso esquecido, de uma ternura trocada,
de um engano reconhecido.
As árvores envolveram-me sem que
o notasse, o fresco da folhagem tocou-me na face distraída, o passo tropeçou na
falta de caminho desenhado, o sol enfraqueceu zurzido por cada tronco. O torpor
daquele imprevisto foi-me acordando lentamente, a floresta começou a rodear-me,
o arrepio de cada medo tornou-se mais forte, o abraçar daquela solidão
estremeceu cada alicerce que me sustinha. Parei. O chão não se via, os meus pés
estavam enterrados num manto vestido de verde-escuro, de castanho, de amarelos
sujos, de negros tintos de vermelhos mortos. Não existia caminho, mesmo que a
aranha pendurada de um fio invisível, balançada de um peso improvável,
indicasse que lá em cima, por entre as copas, estava a vida, a casa, o
alimento.
Para trás já não se via a
planície de caminhos marcados pelos cascos no seu tropel, nem a pedra, nem o
Lobo Negro que hoje não descansava na sua sombra. Isto era o que eu via, o que
eu julgava enquanto o desconhecido me tinha guiado para uma frescura verde que
nunca me atraíra. Senti um bafo quente, um respirar sussurrado numa astúcia que
nunca fora cega, um olhar que me queimava a nuca, que me trespassava. A palavra
soou-me na alma como se tivesse devorado o medo – Era o Lobo Negro. Não me
seguira, era impossível que o tivesse feito. Estava ali porque me pressentira,
porque me adivinhara aquela vontade que conhecia, porque sabia de todos os
perigos, porque era um muro, uma sombra, uma força que nunca se recusava.
Estava deitado sobre o manto
verde, olhos semicerrados, caninos assomando o lábio arqueado. Eu conhecia
aquela pose de vigilância, conhecia o silêncio que tudo dizia. Vi que as duas
árvores que o ladeavam deixavam ver um brilho aquoso ondulado por uma brisa
suave, iluminado por um raio de sol enviesado, e uma sombra negra reflectida
com sinais de vermelho poeirento. Passei pelo Lobo e fui por ali, mais segura,
mais afoita. Enfrentei a clareira que se abrira a meus pés, encontrei um outro
passado, despi o colete roçado, soltei o cabelo vermelho, assomei a juventude irrequieta,
mergulhei no clarão que me feriu os olhos.
De passo em passo, de ternura em
ternura, de sopro em sopro, de momento em momento, de chispa em chispa, de tropeço
em tropeço, de dor em dor, de sangue em sangue, de cicatriz em cicatriz, de cura
em cura, chegou!
Não sei como mesmo que saiba, não
quero saber como mesmo que me importe, não quero julgar o caminho mesmo que o
percorra, não quero contar o tempo mesmo que acelere, não quero escolher o
caminho mesmo que fique parada, não quero escolher a vida mesmo que morra. Não
quero!
Esperei, cheguei, descobri,
consegui… Estou cavalgando no meu Alazão. A terra é outra, o caminho é outro… O
Lobo está sempre ali.
#2213
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