terça-feira, 4 de novembro de 2014

O Alazão Negro que hoje não vi.



Já chovera, o Outono tinha já molhado o chão, mas mesmo assim continuava duro, com cascos desenhados que teimavam em permanecer como escultura, baixo-relevo que o pó amenizava, escritos na paisagem, notas que já tinham sido música, melodia de tantos trotes, de tantos galopes envoltos em nuvens de poeira, sem donos, sem cavaleiros, sem rédeas… ao longe, no fechar de um dos lados do horizonte, lá estava o bosque, altivo nas suas árvores, fechado nas suas sombras, verde no alto, dourado nas folhas que se deixavam pintar pela estação.

O sol também estava ali, meio envergonhado, filtrado nos brilhos que se deixavam coar pelas nuvens, soprando ventos mornos, hesitantes.

Os meus olhos vaguearam por ali, acompanharam os rastos de poeira, procuraram traços frescos de novas cavalgadas, apreciaram os verdes difusos do bosque distante, feriram-se no sol que os penetrou, piscaram nas brisas sopradas do longe onde se perdiam, procuraram, procuraram…

Mas a sombra negra cavalgando poeira não encontrei, não ouvi o barulho dos seus cascos, na planície ausente do calor de cada tropel sonhado. O Alazão Negro permanecia escondido, continuava a viver sem se atrever, por muito que eu oferecida me prometesse, por muito que eu desejada assim quisesse, por muito que eu beijada assim esquecesse.

Logo hoje… como o destino é cruel e destrói cada sonho! Logo hoje que trocara as calças de montar, as botas de cano alto negro, a camisa de flanela aos quadrados, o chapéu de abas largas, as luvas ásperas de domar, o laço dado nas voltas da corda, por um vestido de seda. A saia esvoaçante, mostrava-me as pernas nuas, realçadas pêlos sapatos vermelhos com aqueles saltos…

Logo hoje que o queria deslumbrar, que queria sentir o seu focinho transpirado, o seu bafo quente, o seu arfar depois de mais uma enorme cavalgada, logo hoje que queria que visse que não estava ali para o montar, que não o queria nunca prender, que no dia em que a sua liberdade devolvi, era para sempre, logo hoje quando não sou peão, logo hoje quando sou apenas Mulher.

E o sol foi baixando, as sombras alongaram-se e a minha afastou-se, afastou-se enquanto os pés a seguravam, rodou com o tempo, acompanhou cada ponteiro, misturou-se com ervas, com pedras, cruzou os olhos do Lobo que me espiava e nem se sentia.

Tentei ler os olhos que me alcançavam, mas não consegui. Vi apenas que guardavam um Alazão Negro e mais nada mostravam. Era como se aquele olhar visse e guardasse, sem arremessar, sem criticar, sem mostrar o que por detrás se escondia, o que era e o que seria, na liberdade que cada um tinha de escolher.

O sol mudou de segundo, um raio rebrilhou nos olhos do Lobo, o Alazão desfez-se e no seu negro vi uma Loba que me alcançou. Adivinhei na Loba o seu querer, adivinhei-a no Lobo que a encontrou. O Lobo mostrara de si o que dos outros escondera, o Lobo mostrara a confiança que no sol nascera e, com ela desenhara um novo sonho.

Sorri-lhe. O Lobo poisou o focinho sobre as patas cruzadas e fechou em si o que ali cantara. Na sua imobilidade parecia uma rocha que para sempre ficaria, onde sempre pertencera, adormecido num horizonte que também era meu.

2 comentários:

Maria disse...

AMO!
Este blog tem de sair para a rua.
Os TESOUROS SÃO PARA SEREM DIVULGADOS...!!!

Anónimo disse...

Há dias e há limites para a arrogância dos alazoes desta vida. Há humilhações a que uma mulher nunca deve voltar.