Já chovera, o Outono tinha já molhado
o chão, mas mesmo assim continuava duro, com cascos desenhados que teimavam em permanecer
como escultura, baixo-relevo que o pó amenizava, escritos na paisagem, notas
que já tinham sido música, melodia de tantos trotes, de tantos galopes envoltos
em nuvens de poeira, sem donos, sem cavaleiros, sem rédeas… ao longe, no fechar
de um dos lados do horizonte, lá estava o bosque, altivo nas suas árvores,
fechado nas suas sombras, verde no alto, dourado nas folhas que se deixavam
pintar pela estação.
O sol também estava ali, meio
envergonhado, filtrado nos brilhos que se deixavam coar pelas nuvens, soprando
ventos mornos, hesitantes.
Os meus olhos vaguearam por ali,
acompanharam os rastos de poeira, procuraram traços frescos de novas cavalgadas,
apreciaram os verdes difusos do bosque distante, feriram-se no sol que os
penetrou, piscaram nas brisas sopradas do longe onde se perdiam, procuraram,
procuraram…
Mas a sombra negra cavalgando poeira
não encontrei, não ouvi o barulho dos seus cascos, na planície ausente do calor
de cada tropel sonhado. O Alazão Negro permanecia escondido, continuava a viver
sem se atrever, por muito que eu oferecida me prometesse, por muito que eu
desejada assim quisesse, por muito que eu beijada assim esquecesse.
Logo hoje… como o destino é cruel
e destrói cada sonho! Logo hoje que trocara as calças de montar, as botas de
cano alto negro, a camisa de flanela aos quadrados, o chapéu de abas largas, as
luvas ásperas de domar, o laço dado nas voltas da corda, por um vestido de
seda. A saia esvoaçante, mostrava-me as pernas nuas, realçadas pêlos sapatos
vermelhos com aqueles saltos…
Logo hoje que o queria
deslumbrar, que queria sentir o seu focinho transpirado, o seu bafo quente, o seu
arfar depois de mais uma enorme cavalgada, logo hoje que queria que visse que
não estava ali para o montar, que não o queria nunca prender, que no dia em que
a sua liberdade devolvi, era para sempre, logo hoje quando não sou peão, logo
hoje quando sou apenas Mulher.
E o sol foi baixando, as sombras
alongaram-se e a minha afastou-se, afastou-se enquanto os pés a seguravam,
rodou com o tempo, acompanhou cada ponteiro, misturou-se com ervas, com pedras,
cruzou os olhos do Lobo que me espiava e nem se sentia.
Tentei ler os olhos que me
alcançavam, mas não consegui. Vi apenas que guardavam um Alazão Negro e mais
nada mostravam. Era como se aquele olhar visse e guardasse, sem arremessar, sem
criticar, sem mostrar o que por detrás se escondia, o que era e o que seria, na
liberdade que cada um tinha de escolher.
O sol mudou de segundo, um raio
rebrilhou nos olhos do Lobo, o Alazão desfez-se e no seu negro vi uma Loba que
me alcançou. Adivinhei na Loba o seu querer, adivinhei-a no Lobo que a
encontrou. O Lobo mostrara de si o que dos outros escondera, o Lobo mostrara a
confiança que no sol nascera e, com ela desenhara um novo sonho.
Sorri-lhe. O Lobo poisou o
focinho sobre as patas cruzadas e fechou em si o que ali cantara. Na sua
imobilidade parecia uma rocha que para sempre ficaria, onde sempre pertencera,
adormecido num horizonte que também era meu.
2 comentários:
AMO!
Este blog tem de sair para a rua.
Os TESOUROS SÃO PARA SEREM DIVULGADOS...!!!
Há dias e há limites para a arrogância dos alazoes desta vida. Há humilhações a que uma mulher nunca deve voltar.
Enviar um comentário