domingo, 2 de novembro de 2014

A Savana – As hienas



Elas não eram dali, não pertenciam àquele espaço, vinham em bandos, fingiam-se tristes, choravam rindo, eram gargalhadas de medo, dentes ensanguentados, feias no seu sorrir, nas pelagens malhadas, nas vontades demonstradas.

A Savana não as conhecia, deixou-as ficar, ignorou o cheiro dos ventos que as acompanhavam, não ligou ao sangue, porque já antes cheirara assim por ali. As hienas tinham vindo para destruir, para desfazer equilíbrios, para desrespeitar os velhos, para exterminar os pobres, para dividir quem se unira, para espalhar a discórdia, para acusar os inocentes, para ajudar nas carnificinas, para glorificar os assassinos.

As hienas eram ferozes, incapazes de sentir, animadas pelo prazer de desfazer, de roubar o pouco que sobrava da poça de água malcheirosa e barrenta, de despojar quem se refrescava na sombra da pedra que ali fervia, dividir para reinar, fazer-se aceitar pela força da fome, destruir o pouco que se tinha e que a Savana guardava.

E o sol nasceu mais quente, queimou ainda mais o chão que de tão duro não escrevia pegadas, matou presas, secou neblinas, soprou nuvens para longe, rachou outros troncos, despojou ervas, cegou tantos olhos, inflamou todas as asas, afogou-se nas securas, ameaçou.

Ameaçou quem pouco tinha, transformou dias em noites escaldantes. As hienas desbarataram os velhos predadores solitários, mataram tudo o que eram presas indefesas, devoraram carnes, peles e até ossos, afugentaram os que lhes escaparam, sujaram de sangue a poça de água malcheirosa e barrenta, pintaram tanto chão de vermelho nos desenhos esborratados das suas patas. As hienas eram implacáveis, tanto que se guerreavam e matavam também, enlouquecidas pelo enorme calor, pelo brilho do sol que as cegava, pela fome que já se espalhava como doença.

O Lobo Negro farejou o perigo, não era nada a que a Savana não o habituara, já conhecera outras ditaduras do medo, já morrera aos poucos de solidão, já sofrera outras fomes, enfrentara outros inimigos poderosos, mas nunca o tinha feito assim, ferido, fraco na pelagem acinzentada, nunca com uma fêmea para proteger. Uma fêmea que nunca abandonaria por tudo o que lhe devia, pelo que sentia, por tudo o que queria e acreditava.

O Lobo Negro farejou o perigo e ergueu-se da sombra que o protegia, preparou-se para mais uma luta, a última, a derradeira, a mais importante de todas porque não lutava por si, nem para caçar uma presa, nem pelo prazer da perseguição, do enganar o vento. Aquela derradeira batalha justificaria uma vida, traria toda a felicidade por que sempre aspirara, juntaria em paz o que nunca tivera.

O Lobo Negro levantou-se e uivou. Foi um grito de desafio, um desafio para o bando de hienas assassinas, um grito em que se ouviu um ESTOU AQUI, venham, atrevam-se, é até à morte, não vou descansar, não haverá tréguas, vou defender tudo o que conquistei, vou ganhar todos os direitos, vou escrever outra vitória, não recuo, não, não recuarei!

O Lobo Negro estava ali, patas prontas para mais um salto, caninos afiados espumando, olhos raiados na fúria que o atravessava, guerreiro que mais uma vez desembainhava a espada. Ao seu lado algo mexeu e olhou. Viu a Loba que se levantava, viu-a dirigir-se para a poça de água, barrenta e malcheirosa, agora inundada de sangue. A Loba baixou a cabeça, bebeu e voltou. A Loba juntou-se ao Lobo Negro e uivou.

E aquele uivo foi o aviso da Loba, um grito que penetrou o Lobo, que o fez voltar a acreditar que não estava sozinho, que lhe retemperou as forças, que o afagou por dentro, que lhe devolveu a vida, que lhe acendeu todas as esperanças.

A Savana ouviu aqueles gritos, sentiu a cumplicidade que os unia, limpou a água do charco que se tornou cristalina, aqueceu o sol que queimava as hienas, aliou-se a quem já se juntara, respeitou o que se renovara e esperou.

A Savana esperou que o seu mistério não se revelasse, que aqueles que eram daquele espaço árido, que sempre a tinham respeitado e amado, continuassem, vencessem.

O Lobo e a Loba prometeram não desertar.

1 comentário:

Maria disse...

Brilhante!!!
O Lobo e a Loba
Não vão desertar.
Vão vencer!