Elas não eram dali, não
pertenciam àquele espaço, vinham em bandos, fingiam-se tristes, choravam rindo,
eram gargalhadas de medo, dentes ensanguentados, feias no seu sorrir, nas
pelagens malhadas, nas vontades demonstradas.
A Savana não as conhecia,
deixou-as ficar, ignorou o cheiro dos ventos que as acompanhavam, não ligou ao
sangue, porque já antes cheirara assim por ali. As hienas tinham vindo para
destruir, para desfazer equilíbrios, para desrespeitar os velhos, para exterminar
os pobres, para dividir quem se unira, para espalhar a discórdia, para acusar
os inocentes, para ajudar nas carnificinas, para glorificar os assassinos.
As hienas eram ferozes, incapazes
de sentir, animadas pelo prazer de desfazer, de roubar o pouco que sobrava da
poça de água malcheirosa e barrenta, de despojar quem se refrescava na sombra
da pedra que ali fervia, dividir para reinar, fazer-se aceitar pela força da
fome, destruir o pouco que se tinha e que a Savana guardava.
E o sol nasceu mais quente, queimou
ainda mais o chão que de tão duro não escrevia pegadas, matou presas, secou
neblinas, soprou nuvens para longe, rachou outros troncos, despojou ervas,
cegou tantos olhos, inflamou todas as asas, afogou-se nas securas, ameaçou.
Ameaçou quem pouco tinha,
transformou dias em noites escaldantes. As hienas desbarataram os velhos
predadores solitários, mataram tudo o que eram presas indefesas, devoraram
carnes, peles e até ossos, afugentaram os que lhes escaparam, sujaram de sangue
a poça de água malcheirosa e barrenta, pintaram tanto chão de vermelho nos
desenhos esborratados das suas patas. As hienas eram implacáveis, tanto que se
guerreavam e matavam também, enlouquecidas pelo enorme calor, pelo brilho do
sol que as cegava, pela fome que já se espalhava como doença.
O Lobo Negro farejou o perigo,
não era nada a que a Savana não o habituara, já conhecera outras ditaduras do
medo, já morrera aos poucos de solidão, já sofrera outras fomes, enfrentara
outros inimigos poderosos, mas nunca o tinha feito assim, ferido, fraco na
pelagem acinzentada, nunca com uma fêmea para proteger. Uma fêmea que nunca
abandonaria por tudo o que lhe devia, pelo que sentia, por tudo o que queria e
acreditava.
O Lobo Negro farejou o perigo e
ergueu-se da sombra que o protegia, preparou-se para mais uma luta, a última, a
derradeira, a mais importante de todas porque não lutava por si, nem para caçar
uma presa, nem pelo prazer da perseguição, do enganar o vento. Aquela
derradeira batalha justificaria uma vida, traria toda a felicidade por que
sempre aspirara, juntaria em paz o que nunca tivera.
O Lobo Negro levantou-se e uivou.
Foi um grito de desafio, um desafio para o bando de hienas assassinas, um grito
em que se ouviu um ESTOU AQUI, venham, atrevam-se, é até à morte, não vou
descansar, não haverá tréguas, vou defender tudo o que conquistei, vou ganhar
todos os direitos, vou escrever outra vitória, não recuo, não, não recuarei!
O Lobo Negro estava ali, patas
prontas para mais um salto, caninos afiados espumando, olhos raiados na fúria
que o atravessava, guerreiro que mais uma vez desembainhava a espada. Ao seu
lado algo mexeu e olhou. Viu a Loba que se levantava, viu-a dirigir-se para a
poça de água, barrenta e malcheirosa, agora inundada de sangue. A Loba baixou a
cabeça, bebeu e voltou. A Loba juntou-se ao Lobo Negro e uivou.
E aquele uivo foi o aviso da
Loba, um grito que penetrou o Lobo, que o fez voltar a acreditar que não estava
sozinho, que lhe retemperou as forças, que o afagou por dentro, que lhe
devolveu a vida, que lhe acendeu todas as esperanças.
A Savana ouviu aqueles gritos,
sentiu a cumplicidade que os unia, limpou a água do charco que se tornou
cristalina, aqueceu o sol que queimava as hienas, aliou-se a quem já se
juntara, respeitou o que se renovara e esperou.
A Savana esperou que o seu
mistério não se revelasse, que aqueles que eram daquele espaço árido, que
sempre a tinham respeitado e amado, continuassem, vencessem.
O Lobo e a Loba prometeram não
desertar.
1 comentário:
Brilhante!!!
O Lobo e a Loba
Não vão desertar.
Vão vencer!
Enviar um comentário