sexta-feira, 21 de março de 2014

Carisma - I


E a chuva que caía azul e fria,
Inundou o vidro da ampulheta e a areia secou.
Secou e parou o tempo,
Iluminou a noite que crescia,
Fez descer a névoa que por detrás se via,
Renasceu a sombra que ainda resistia,
Ocultou a nuvem entre a folhagem,
Molhou os dois corpos unidos,
Bem dentro daquela imagem.

E um deus cego segurou o nosso abraço,
Transformou em dom cada traço,
Despejou em cada corpo todo o carisma,
Que te enfeitiçou,
Que me amordaçou para que o grito não pronunciasse,
Para que a palavra o momento não estragasse,
E o amor apenas se sentisse na lava que derrete a pedra,
Na areia que sucumbe sobre o peso de cada pé,
Que juntos se afogam,
Na espuma da onda na praia terminada.

Cada gota da chuva que me tocou,
Cada gota que sobre ti rolou,
Corrida nos cantos das bocas sofregamente coladas,
Secou as dores das mentes amarguradas,
Despontou horizontes escondidos em sonhos,
Acendeu fogueiras sob os umbigos,
Uniu cada ponto que se assemelhava,
Juntou ao olhar o que nos escapava.

Cada mão se abraçou,
Cada peito ao outro se colou,
Cada ventre se conheceu,
Cada sexo se penetrou,
E a hora avançou,
E a noite correu,
Todo o desejo nascido cresceu,
Consumiu o ar que havia para respirar,
Fez-te pecado,
Fez-me pecado,
Transformou-se em fado que se cantou,
Cresceu e tudo inundou.

E as mãos corridas pela pele macia,
Fizeram-se amor que por ela subia,
Acrescentaram ao tacto o que se adivinhava,
Cobriram vermelhos feitos sedas,
Adoçaram dores antes azedas.

Tudo parou agora,
Tudo recomeçou agora,
Nos corpos unidos,
Nos prazeres sentidos,
Nas vidas cruzadas,
Nas salivas misturadas,
No cavalgar das trevas pelas paixões partilhadas,
Nas cumplicidades há tanto tempo irmanadas.

E nada do que se fez se esqueceu,
E nada do que se teve em nós morreu,
E tudo o que se fez voltou,
E tudo o que se teve nos inundou,
Outra vez agora e desapareceu,
Desapareceu porque o agora morreu,
Mas o tempo redondo, rodou,
E o que antes era, em agora se transformou,
E no agora te amo,
E no agora me amas,
Permanecendo no agora que se quer para nós,
Feito vida que logo se esvai,
Feito folha que da árvore cai.

E quando o agora terminar,
Quero que te lembres daquilo que sou,
Quero vejas tudo o que te dou,
Quero que olhes o brilho que nos olhos se apagou,
Quero que sintas o calor do abraço que te mudou,
Quero que oiças os gemidos do sexo que se soltou,
Quero que percorras cada pegada que o trilho desenhou.
Mas agora quero-te,
Amo-te,
Desejo-te,
Possuo-te,
Penetro-te,
Remexo-te,
Reinvento-te,
Admiro-te,
Adoro-te,
Aperto-te,
Abraço-te,
Asfixio-te,
Liberto-te…

Liberto-te, para que possas escolher o próximo agora que chegar,
O agora onde estou e irei para sempre ficar.

#1539

1 comentário:

Maria disse...

Sonho...!
Parabéns,Mestre!
Beijo