Quase sempre nos preocupamos com
grandes feitos, grandes problemas, enormes vitórias, derrotas, amores e mais
amores, paixões inflamadas, profundas, avassaladoras, tempos contados, tempos
que se gastaram, se misturaram, desapareceram, nos dias, nas noites, em
quartos, nas ruas, nos desertos imensos, na solidão das multidões.
Arrumamos tudo em caixinhas, em
cofres, nas prateleiras do nosso passado, bem catalogadas, classificadas por
tipo, por cor, pelo tamanho que se nos afigura, pelo valor e, depois por data
(sim, foi naquele dia em que chovia tanto, já passava da meia-noite quando
aconteceu…); claro que a hora também é importante para se perceber (nunca o
omitiria nem o iria esquecer!).
Assim a vida é um supermercado,
cheia de expositores muito bem alinhados, tudo o que é doce se mistura com
pacotes de açúcar, tudo o que é ardente intercala as pimentas, mistura-se com
caril, malaguetas enormes e picantes, para que as crianças não provem o que
lhes está proibido e os outros não comam grandes colheradas de sexo ou luxúria;
as vitórias, mesmo que pequenas, ficam perto das “caixas”, para que todas as
olhem, vejam as suas “promoções” e se lambuzem todos, nos lambuzem todos nos
orgulhos, nos prazeres de as reviver.
É um supermercado com prateleiras
cheias de etiquetas, onde cada coisa está no seu lugar, com nomes em letras
maiores, preços, ofertas, promoções, para que nada se perca, para que quem
chega se sirva sem querer saber, porque os segredos estão bem escondidos,
protegidos por prazos já falidos. E as prateleiras apresentam mortos, mortos
que estão a ser vendidos, mortos que nem sabem que estão mortos, cobertos com
películas transparentes para que não fedam.
São assim as vidas calmas,
certinhas, sem sobressaltos, tudo planeado, tudo previsto, frio, de onde o
morno nem se aproxima, porque o futuro está já desenhado, com tinta preta e
traços finos de tinta permanente.
Eu não uso aparos, não uso só
aquela tinta, não respeito ritmos nem tempos, ignoro o tempo que passou e o que
virá; tenho agora o meu tempo, o que interessa, o que vivo, acelerando a fundo,
numa estrada onde não enxergo o fim (sei lá se chego ao fim), olhando para as
bermas que estão ali, parando por vezes para ajudar, dar a mão a quem me quer
acompanhar e, seguindo.
Não tenho nem caixas, nem cofres,
nem prateleiras arrumadinhas com etiquetas, tudo está misturado, sem datas, sem
horas, com azuis que eram frios, misturados com amarelos para que se esverdeiem
de esperança e pitadas de vermelho para que se apimentem, servidos em grandes
telas, onde os pincéis se perderam em enormes manchas, onde há cinzentos,
sombras, fantasmas, pretos misturados com brilhos intensos, em tempestades, em
madrugadas esbatidas ou enormes trovoadas. Outras pintadas com carvão, com os
dedos, com as mãos que as percorreram, lambidas, cheiradas, em traços vincados
e fortes, noutras esbatidas pelo tempo ou por quem desapareceu.
Existem sempre sombras, escuridão
em cada negro, calor em cada vermelho, paixão em cada pingo de sangue, em cada
amante, nas horas inflamadas por prazeres, nas saudades, na vida que se quer
agora.
Certinho?
Não!
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