quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Savana III - O Lobo


A savana continuava lá, imutável na sua beleza árida, tórrida, seca, implacável. A savana não perdoava, não perdoava a quem desrespeitasse as suas leis, a quem não cumprisse as regras, aos que confundissem a sua própria liberdade.

A savana continuava a secar tudo, troncos, ervas, folhas, quem nos céus se abalançava, secando as penas, as asas, o ar que rareava lá no alto, a poeira que os ventos arrastavam, revolviam, arremessavam contra olhos, corpos, pelagens. A savana pintava tudo da sua cor parda, poucos sabiam como evitar a sua paleta, poucos conseguiam perceber as suas leis, poucos resistiam à enorme força das suas vontades misteriosas.

O Lobo pertencia ali, o Lobo vivia ali, sempre vivera e viveria. Conhecia a savana como ninguém, respeitava-a, entendia-a, fazia-a cumprir, saciava-se na poça de água lamacenta que resistia perto da sombra que o acolhia com gratidão. O Lobo sempre voltava ali, voltava para descansar, para saciar a sede, para curar as feridas infligidas.

Estava ali. No dorso tinha a enorme cicatriz da última batalha, ainda fresca, que por vezes ainda sangrava de profunda que era, de recente que parecia. Também o Lobo tinha sido tentado pela savana, essa savana traiçoeira, que lhe mostrara um dia a fêmea que o desafiara. O Lobo esquecera que era preciso cumprir as leis da savana e cegou com a imagem que a savana lhe mostrou. O Lobo ignorou todas as diferenças, aquelas que sempre tinha detestado, que o feriam, que não aceitava. Aceitou e viu como tudo era falso, imagem de uma miragem, sedutora como as sereias que afundam os navios com seus hinos, como o espelho que mostra a imagem que não existe por detrás.

Ignorou tudo e viu a imagem sofrer, ajudou, sofreu também. Mas o instinto de predador do Lobo é mais forte do que as leis do seu próprio coração, o instinto de predador acordou e mesmo contra o que sentia não perdoou. A imagem sem ajuda desapareceu, como desaparecem todos os que desafiam o mistério daquela savana interminável.

Mais uma vez o Lobo sentiu o que queria, sentiu o que deveria ser, como tinha que ser. O Lobo avisou as Leoas, o Lobo avisou as Lobas, o Lobo avistou os Leões que ali não existiam, mas que viviam dentro das fêmeas que os desejavam, com todos os medos, todas as seduções, todas as contradições.

O Lobo provocou os machos escondidos. Alguns fugiram, evitaram o confronto, foram para outras sombras que os protegessem. As Leoas ficaram, as outras Lobas também.

Todos estavam ali, deitados nos seus grupos, gozando os seus descansos, defendendo os seus sonhos, aproveitando as suas sombras. A inocente gazela voltou e mais uma vez desafiou os predadores, mais uma vez saciou a sede na poça de água barrenta. Mais uma vez roçou o focinho do Lobo que a ignorou, afastando-se outra vez sem perceber como se salvara.

O Lobo voltou a enroscar-se na Leoa Negra que teimava em partilhar a sombra que o acolhia. Também ela tinha percebido o mistério da savana que se repetiu.

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