A savana continuava lá, imutável
na sua beleza árida, tórrida, seca, implacável. A savana não perdoava, não
perdoava a quem desrespeitasse as suas leis, a quem não cumprisse as regras,
aos que confundissem a sua própria liberdade.
A savana continuava a secar tudo,
troncos, ervas, folhas, quem nos céus se abalançava, secando as penas, as asas,
o ar que rareava lá no alto, a poeira que os ventos arrastavam, revolviam,
arremessavam contra olhos, corpos, pelagens. A savana pintava tudo da sua cor
parda, poucos sabiam como evitar a sua paleta, poucos conseguiam perceber as
suas leis, poucos resistiam à enorme força das suas vontades misteriosas.
O Lobo pertencia ali, o Lobo
vivia ali, sempre vivera e viveria. Conhecia a savana como ninguém,
respeitava-a, entendia-a, fazia-a cumprir, saciava-se na poça de água lamacenta
que resistia perto da sombra que o acolhia com gratidão. O Lobo sempre voltava
ali, voltava para descansar, para saciar a sede, para curar as feridas infligidas.
Estava ali. No dorso tinha a
enorme cicatriz da última batalha, ainda fresca, que por vezes ainda sangrava
de profunda que era, de recente que parecia. Também o Lobo tinha sido tentado
pela savana, essa savana traiçoeira, que lhe mostrara um dia a fêmea que o
desafiara. O Lobo esquecera que era preciso cumprir as leis da savana e cegou
com a imagem que a savana lhe mostrou. O Lobo ignorou todas as diferenças,
aquelas que sempre tinha detestado, que o feriam, que não aceitava. Aceitou e
viu como tudo era falso, imagem de uma miragem, sedutora como as sereias que
afundam os navios com seus hinos, como o espelho que mostra a imagem que não
existe por detrás.
Ignorou tudo e viu a imagem
sofrer, ajudou, sofreu também. Mas o instinto de predador do Lobo é mais forte
do que as leis do seu próprio coração, o instinto de predador acordou e mesmo
contra o que sentia não perdoou. A imagem sem ajuda desapareceu, como
desaparecem todos os que desafiam o mistério daquela savana interminável.
Mais uma vez o Lobo sentiu o que
queria, sentiu o que deveria ser, como tinha que ser. O Lobo avisou as Leoas, o
Lobo avisou as Lobas, o Lobo avistou os Leões que ali não existiam, mas que
viviam dentro das fêmeas que os desejavam, com todos os medos, todas as
seduções, todas as contradições.
O Lobo provocou os machos
escondidos. Alguns fugiram, evitaram o confronto, foram para outras sombras que
os protegessem. As Leoas ficaram, as outras Lobas também.
Todos estavam ali, deitados nos
seus grupos, gozando os seus descansos, defendendo os seus sonhos, aproveitando
as suas sombras. A inocente gazela voltou e mais uma vez desafiou os
predadores, mais uma vez saciou a sede na poça de água barrenta. Mais uma vez
roçou o focinho do Lobo que a ignorou, afastando-se outra vez sem perceber como
se salvara.
O Lobo voltou a enroscar-se na
Leoa Negra que teimava em partilhar a sombra que o acolhia. Também ela tinha
percebido o mistério da savana que se repetiu.
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