domingo, 28 de julho de 2013

O alazão negro - Eu vi-te outra vez


Teimava em ir até ali. Sentava-me sobre uma pedra admirando a planície nua e poeirenta, desenhada pelos cascos dos alazões que a percorriam, e a beleza dos bosques que ao longe assomavam nas verdes copas de tantas árvores.

Sempre tudo aqui era igual, igual para me lembrar aquele dia em que o domara, em que o afagara, em que o libertara. Tudo ficara igual, a poeira que com os cascos levantara, o suor espalhado, caído do dorso que afagara com o meu corpo, que me escorrera pelas pernas, que se misturara com o meu suor, vertendo o prazer do contacto, o roçar no seu pelo negro. Tudo ficara igual nos pingos de baba que cuspira, na fúria da espuma que assomava a boca, que sacudira nos saltos, nas correrias ao vento, nos pinotes em que gritava que não me queria.

Levantei-me da pedra, rodopiei em bicos de pés e, comigo a paisagem rodou, acompanhou o olhar que estendia por ali, convidando a mais uma volta, á vertigem de mudar o que cada angulo escondia. Continuei, abri os braços e rodei. Mais rápido outra volta ensaiei e mais outra. O bosque desaparecia, voltava o céu, depois o pó, a pedra onde me sentara, o bosque outra vez, e com tudo a mudar, a girar, a minha cabeça perdeu o que em sequência aparecia, e numa tontura tudo se pôs negro.

E o negro penetrou-me e a tontura transformou em agonia. Percorreu-me a espinha e senti frio, abanou o meu equilíbrio e quase caí, entrou-me pelo coração como enorme furacão e só então o vi.

Estava ali parado, crinas as vento, a cauda enxotando as moscas que o picavam, cabeça altiva, onde os olhos brilhantes chispavam e aboca escorria do cansaço da correria.

Olhei-o, parei, entonteci do volteio, da surpresa, da saudade que julgava curada, do desejo de o ter, da contradição que o libertara. Cambaleei. Percorri a distancia que nos separava, estendi a mão, agarrei a crina, sequei-lhe a boca com o bafo da respiração, beijei o pescoço que me mostrava.

Vi nos seus olhos voltar o medo, no seu espírito desenhou-se o laço branco que amarrara seu pescoço altivo, que quase me matara, que o prendera na cavalgada louca de um desejo antigo que o queimara, que me queimara, que nos unira, que nos separara. Estremeceu e nas patas de trás se ergueu, ameaçando esmagar-me com os cascos nus das mãos enleadas.

Mas parou, parou no ar, imobilizou-se no alto, recuou e desceu. Depois relinchou e desapareceu. Desapareceu naquele bosque ali que o engoliu.

O alazão negro voltara, o alazão negro estivera ali e mais uma vez escapara no meio da nuvem poeirenta do medo que lhe cegava o olhar, que nas minhas mãos vazias depositara.

Tudo lhe ofereci na sua liberdade, tudo lhe ofereço no meu desejo calado, tudo lhe espero.

2 comentários:

Anónimo disse...

Porque é que insiste em voltar? Para testar o seu poder? Para a seguir desaparecer com a certeza de o ter? Estranha forma de vida, que alimenta partidas, desaparecimentos e outros tantos regressos ano após ano. E se nunca foi nada disto? Se acreditaste sempre que era medo, mas sempre foi algo inferior? Nunca se tratou de medo, foi ego, do alazão e apenas isso. Quem não gosta de se saber esperado? Até o animal mais confiante e garanhao. Gestão de escassez e disponibilidade.

Eu não sou ninguém disse...

Volta para avivar a perseguição, porque gosta de ditar leis. Medo, porque precisa da coragem que não tem, medo porque o laço já o prendeu uma vez, medo porque nem sempre estamos dispostos a devolver a liberdade quando a temos na mão.