Teimava em ir até ali. Sentava-me
sobre uma pedra admirando a planície nua e poeirenta, desenhada pelos cascos
dos alazões que a percorriam, e a beleza dos bosques que ao longe assomavam nas
verdes copas de tantas árvores.
Sempre tudo aqui era igual, igual
para me lembrar aquele dia em que o domara, em que o afagara, em que o
libertara. Tudo ficara igual, a poeira que com os cascos levantara, o suor
espalhado, caído do dorso que afagara com o meu corpo, que me escorrera pelas
pernas, que se misturara com o meu suor, vertendo o prazer do contacto, o roçar
no seu pelo negro. Tudo ficara igual nos pingos de baba que cuspira, na fúria
da espuma que assomava a boca, que sacudira nos saltos, nas correrias ao vento,
nos pinotes em que gritava que não me queria.
Levantei-me da pedra, rodopiei em
bicos de pés e, comigo a paisagem rodou, acompanhou o olhar que estendia por
ali, convidando a mais uma volta, á vertigem de mudar o que cada angulo
escondia. Continuei, abri os braços e rodei. Mais rápido outra volta ensaiei e
mais outra. O bosque desaparecia, voltava o céu, depois o pó, a pedra onde me
sentara, o bosque outra vez, e com tudo a mudar, a girar, a minha cabeça perdeu
o que em sequência aparecia, e numa tontura tudo se pôs negro.
E o negro penetrou-me e a tontura
transformou em agonia. Percorreu-me a espinha e senti frio, abanou o meu equilíbrio
e quase caí, entrou-me pelo coração como enorme furacão e só então o vi.
Estava ali parado, crinas as
vento, a cauda enxotando as moscas que o picavam, cabeça altiva, onde os olhos
brilhantes chispavam e aboca escorria do cansaço da correria.
Olhei-o, parei, entonteci do
volteio, da surpresa, da saudade que julgava curada, do desejo de o ter, da
contradição que o libertara. Cambaleei. Percorri a distancia que nos separava,
estendi a mão, agarrei a crina, sequei-lhe a boca com o bafo da respiração,
beijei o pescoço que me mostrava.
Vi nos seus olhos voltar o medo,
no seu espírito desenhou-se o laço branco que amarrara seu pescoço altivo, que
quase me matara, que o prendera na cavalgada louca de um desejo antigo que o
queimara, que me queimara, que nos unira, que nos separara. Estremeceu e nas
patas de trás se ergueu, ameaçando esmagar-me com os cascos nus das mãos
enleadas.
Mas parou, parou no ar,
imobilizou-se no alto, recuou e desceu. Depois relinchou e desapareceu.
Desapareceu naquele bosque ali que o engoliu.
O alazão negro voltara, o alazão
negro estivera ali e mais uma vez escapara no meio da nuvem poeirenta do medo
que lhe cegava o olhar, que nas minhas mãos vazias depositara.
Tudo lhe ofereci na sua
liberdade, tudo lhe ofereço no meu desejo calado, tudo lhe espero.
2 comentários:
Porque é que insiste em voltar? Para testar o seu poder? Para a seguir desaparecer com a certeza de o ter? Estranha forma de vida, que alimenta partidas, desaparecimentos e outros tantos regressos ano após ano. E se nunca foi nada disto? Se acreditaste sempre que era medo, mas sempre foi algo inferior? Nunca se tratou de medo, foi ego, do alazão e apenas isso. Quem não gosta de se saber esperado? Até o animal mais confiante e garanhao. Gestão de escassez e disponibilidade.
Volta para avivar a perseguição, porque gosta de ditar leis. Medo, porque precisa da coragem que não tem, medo porque o laço já o prendeu uma vez, medo porque nem sempre estamos dispostos a devolver a liberdade quando a temos na mão.
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