Quando tinha dez ou onze anos, o
meu pai chegou um dia a casa com um embrulho pequeno, feito com uma folha de
jornal antiga. Levou-me para o quintal da casa, foi à arrecadação. E voltou com
umas tábuas, uns barrotes quadrados e algumas ferramentas. Colocou tudo sobre
uma mesa de madeira velha, que por ali se mantinha e disse-me:
“Vou ensinar-te a fazer um carro
com rolamentos”.
Afinal eram quatro rolamentos de
automóvel, usados, que vinham no embrulho de jornal com que o tinha visto
andar. Eram rolamentos que tinha mandado substituir do seu próprio carro e que
trazia da oficina. Era com eles que iriam-mos fazer o meu primeiro “bólide”. A “máquina”
que me transportarias ladeiras abaixo em altas correrias.
Escolhemos uma tábua rectangular
de comprimento igual ao das minhas pernas dobradas em “V”. Mal me dei conta e
estava com um bloco de madeira, envolvido numa lixa, a alisar a tábua que o meu
pai colocara sobre a mesa. Enquanto isso, o meu pai estava a tornar cilíndrica,
a ponta dos barrotes quadrados, que iriam servir de eixo.
Ao fim de uma hora, o “bólide”
estava montado, com os rolamentos na ponta dos eixos, e um volante que não era
mais que um pedaço de corda amarrado às extremidades do eixo da frente, e
imagine-se, até tinha um travão, que encostava ao chão um quadrado de pneu
velho, pregado na ponta de vinte centímetros de barrote, e aparafusado na
ilharga do assento.
Foi logo testar a minha perícia
na grande descida alcatroada que passava mesmo junto da casa dos meus pais, e
aí testei pela primeira vez a adrenalina do desafio da velocidade.
Alguns meses depois, achei que as
rodas do meu carro já eram pequenas para a velocidade que me fazia falta. Fui a
uma oficina que ficava perto e falei com um dos mecânicos, que me achou piada,
que me deu um saco com uns dez rolamentos de eixos de tractores e camiões. Eram
bastante maiores dos que equipavam o meu carro, mas tinham alguma ferrugem e
não eram todos iguais. Voltei para casa arrastando o saco, que pesava demasiado
para um miúdo daquela idade.
A primeira coisa que fiz foi
arranjar uma velha lata de tinta, colocar lá os rolamentos e cobri-los com
petróleo. Ficaram a repousar umas horas e depois lavei-os cuidadosamente com um
pincel e uma escova de arame. Todos eles rodavam, o que já não era mau. Escolhi
quatro iguais, bem grandes, e verifiquei como se comportavam. Todos eles
rodavam perfeitamente, estava feita a selecção e por isso guardei os restantes.
Tirei os pequenos dos eixos do
carro e coloquei os maiores no seu lugar, mas antes fui obrigado a ajustar as
pontas dos eixos às novas rodas. Roubei um bocadinho de óleo lubrificante da
máquina de costura da minha mãe, e com ele lubrifiquei generosamente cada
rolamento novo. Estava tudo pronto para o primeiro teste.
Com o carro a reboque (porque não
podia com ele) lá fui para a ladeira, arrastando-o até ao cimo. Sentei-me, dei
um balanço inicial com as mãos apoiadas no chão, e a descida vertiginosa iniciou-se.
Com ele dei grandes trambolhões, parti a cabeça, esfolei os joelhos, as mãos, o
queixo, os cotovelos, mas a velocidade passou a fazer parte da minha vida,
viciei-me naquela adrenalina que sempre me tem acompanhado em tudo o que faço.
Continuo a andar todos os dias, a
toda a hora, em cada momento, no meu carrinho de rodas de rolamentos, oleados
com óleo de máquina de costura, descendo uma ladeira interminável, cheia de
curvas difíceis, de buracos pequenos e grandes, com pedras perdidas à saída das
curvas mais perigosas, com árvores que a ladeiam e me travam nos despistes, com
ervas e cardos de enormes espinhos que se cravam na pele de quem se aventura a
atravessá-los, esfolando joelhos, esmurrando a cara, ferindo as mãos.
Caio muitas vezes, mas logo me
levanto, sento-me no meu banco de espuma coberta de pano-cru, dou balanço com
as mãos, cerro os dentes para aguentar o ardor das feridas, e continuo a
descer, e a velocidade aumenta, é sempre mais difícil, as curvas são mais
apertadas e perigosas, as pedras repetem-se. Desafio os meus próprios limites,
tornei-me cada vez mais ágil, conheço todos os truques para evitar as quedas, aprendi
a enganar todas as trajectórias, conheço cada travagem, cada centímetro do
declive, a vertigem de derrapar.
Não sou capaz de evitar a
descida, o desafio que é estar sempre à beira do precipício, desafiando a sorte
em cada momento, expor a face ao vento que faz as lágrimas saltarem dos olhos,
turvando a visão e tornando a descida mais audaz. É um vício, é uma loucura, é
uma tentação que não recuso, é mais uma oportunidade para mostrar à vida que
estou vivo.
É uma corrida que faço sempre,
cada dia, a cada hora em que o declive da ladeira se inclina mais, cada vez
mais para tentar derrubar-me. É um desafio que sempre aceitei e continuo a
aceitar. É um desafio que aceito e abraço a dois, nunca o faço sozinho.
Sou eu… e o meu carrinho de
rolamentos.
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