quarta-feira, 31 de julho de 2013

A vertigem


Quando tinha dez ou onze anos, o meu pai chegou um dia a casa com um embrulho pequeno, feito com uma folha de jornal antiga. Levou-me para o quintal da casa, foi à arrecadação. E voltou com umas tábuas, uns barrotes quadrados e algumas ferramentas. Colocou tudo sobre uma mesa de madeira velha, que por ali se mantinha e disse-me:

“Vou ensinar-te a fazer um carro com rolamentos”.

Afinal eram quatro rolamentos de automóvel, usados, que vinham no embrulho de jornal com que o tinha visto andar. Eram rolamentos que tinha mandado substituir do seu próprio carro e que trazia da oficina. Era com eles que iriam-mos fazer o meu primeiro “bólide”. A “máquina” que me transportarias ladeiras abaixo em altas correrias.

Escolhemos uma tábua rectangular de comprimento igual ao das minhas pernas dobradas em “V”. Mal me dei conta e estava com um bloco de madeira, envolvido numa lixa, a alisar a tábua que o meu pai colocara sobre a mesa. Enquanto isso, o meu pai estava a tornar cilíndrica, a ponta dos barrotes quadrados, que iriam servir de eixo.

Ao fim de uma hora, o “bólide” estava montado, com os rolamentos na ponta dos eixos, e um volante que não era mais que um pedaço de corda amarrado às extremidades do eixo da frente, e imagine-se, até tinha um travão, que encostava ao chão um quadrado de pneu velho, pregado na ponta de vinte centímetros de barrote, e aparafusado na ilharga do assento.

Foi logo testar a minha perícia na grande descida alcatroada que passava mesmo junto da casa dos meus pais, e aí testei pela primeira vez a adrenalina do desafio da velocidade.

Alguns meses depois, achei que as rodas do meu carro já eram pequenas para a velocidade que me fazia falta. Fui a uma oficina que ficava perto e falei com um dos mecânicos, que me achou piada, que me deu um saco com uns dez rolamentos de eixos de tractores e camiões. Eram bastante maiores dos que equipavam o meu carro, mas tinham alguma ferrugem e não eram todos iguais. Voltei para casa arrastando o saco, que pesava demasiado para um miúdo daquela idade.

A primeira coisa que fiz foi arranjar uma velha lata de tinta, colocar lá os rolamentos e cobri-los com petróleo. Ficaram a repousar umas horas e depois lavei-os cuidadosamente com um pincel e uma escova de arame. Todos eles rodavam, o que já não era mau. Escolhi quatro iguais, bem grandes, e verifiquei como se comportavam. Todos eles rodavam perfeitamente, estava feita a selecção e por isso guardei os restantes.

Tirei os pequenos dos eixos do carro e coloquei os maiores no seu lugar, mas antes fui obrigado a ajustar as pontas dos eixos às novas rodas. Roubei um bocadinho de óleo lubrificante da máquina de costura da minha mãe, e com ele lubrifiquei generosamente cada rolamento novo. Estava tudo pronto para o primeiro teste.

Com o carro a reboque (porque não podia com ele) lá fui para a ladeira, arrastando-o até ao cimo. Sentei-me, dei um balanço inicial com as mãos apoiadas no chão, e a descida vertiginosa iniciou-se. Com ele dei grandes trambolhões, parti a cabeça, esfolei os joelhos, as mãos, o queixo, os cotovelos, mas a velocidade passou a fazer parte da minha vida, viciei-me naquela adrenalina que sempre me tem acompanhado em tudo o que faço.

Continuo a andar todos os dias, a toda a hora, em cada momento, no meu carrinho de rodas de rolamentos, oleados com óleo de máquina de costura, descendo uma ladeira interminável, cheia de curvas difíceis, de buracos pequenos e grandes, com pedras perdidas à saída das curvas mais perigosas, com árvores que a ladeiam e me travam nos despistes, com ervas e cardos de enormes espinhos que se cravam na pele de quem se aventura a atravessá-los, esfolando joelhos, esmurrando a cara, ferindo as mãos.

Caio muitas vezes, mas logo me levanto, sento-me no meu banco de espuma coberta de pano-cru, dou balanço com as mãos, cerro os dentes para aguentar o ardor das feridas, e continuo a descer, e a velocidade aumenta, é sempre mais difícil, as curvas são mais apertadas e perigosas, as pedras repetem-se. Desafio os meus próprios limites, tornei-me cada vez mais ágil, conheço todos os truques para evitar as quedas, aprendi a enganar todas as trajectórias, conheço cada travagem, cada centímetro do declive, a vertigem de derrapar.

Não sou capaz de evitar a descida, o desafio que é estar sempre à beira do precipício, desafiando a sorte em cada momento, expor a face ao vento que faz as lágrimas saltarem dos olhos, turvando a visão e tornando a descida mais audaz. É um vício, é uma loucura, é uma tentação que não recuso, é mais uma oportunidade para mostrar à vida que estou vivo.

É uma corrida que faço sempre, cada dia, a cada hora em que o declive da ladeira se inclina mais, cada vez mais para tentar derrubar-me. É um desafio que sempre aceitei e continuo a aceitar. É um desafio que aceito e abraço a dois, nunca o faço sozinho.

Sou eu… e o meu carrinho de rolamentos.

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