quarta-feira, 30 de março de 2016

“O Alazão Negro” – Dúvidas”



E agora? Que fazer?

Estava ali, de pé, olhando o Lobo que dormitava, junto da pedra onde me sentara, naquela planície amarelada, de poeira fina e chão duro, aquela planície onde tanta vez encontrara o sonho, onde tanta vez recusara, onde a felicidade me tocava ao de leve e fugia envolta em nuvens de pó, em correrias loucas, acompanhada pelo som cavo de tantos cascos.

Mas tudo fazia sentido agora; o desejo, a espera, o sacrifício, a teimosia, a recusa, a promessa, a determinação. Tudo se alinhava, o nevoeiro que envolvia todas as recordações, dissipara-se, tudo estava mais claro, o mistério desfez-se, vi!

Este “novo” Alazão, este cheiro, a visão de momentos passados, tinham trazido a verdade, a razão de tudo o que fizera, de cada loucura, do mastigar das entranhas, da espera interminável, do adiar, da esperança, das desilusões.

Revi outra planície, também de terra dura, coberta de uma poeira vermelha, muito fina, cheia de pegadas, marcas de cascos nas suas correrias, onde não havia pedra nem Lobo, onde encontrara aquele Alazão que me fascinara, coberto daquela poeira que lhe dava traços de dragão. Relembrei o laço com que o aprisionei, relembrei como o soltei depois, todas as dúvidas e medos de uma mulher-menina, todas as hesitações, a fuga.

Agora percebo que o “meu” Alazão, não foi mais que uma substituição, uma transferência, um engano, um tentar esquecer.

Tudo isto apenas porque virei costas a uma “talvez” felicidade, a uma “talvez” paixão, a um “talvez” prazer, a uma “talvez” realização.

Todos os sonhos são cheios de muitos “talvez”. Este nem sequer os teve porque tudo recusei. Foi a minha culpa, a minha imaturidade, cada um de todos os medos, a incerteza de cada “talvez”, que me ficou a roer por dentro, que me enganou quando julguei ter esquecido, quando o substituí por outra imagem que me pareceu igual, inconscientemente, maldosamente para me martirizar, como que para espiar esse meu passado.

E agora estava ali, olhando o Lobo, depois daquele encontro com um outro Alazão que regressara, no desassossego de quem não sabe prever o futuro, fazendo voltar a incerteza da adolescência, o medo no descrever da próxima curva, o cansaço antes de enfrentar a ingreme subida, que um passado longínquo tinha deixado por fazer.

Abanei-me.

Aquela menina insegura já não existia (ou pelo menos eu não queria que ela existisse). Vou em frente! Desta vez vou tentar, dê por onde der, não vou recusar a procura daquele amor que podia ter tido. Vou lutar para que o sonho volte e os meus braços se enrosquem outra vez naquele pescoço altivo. Quero voar, quero fechar os olhos e ver aquele dorso coberto pela poeira de outra planície, quero sentar-me no vento e percorrer cada momento ao contrário, criar uma certeza sobre cada dúvida enraizada, sujar as mãos, voltar a sentir o arfar de cada peito tocado, deixar-me levar, deixar-me levar.

E agora?

Agora tinha de pensar, não chegava tentar ignorar todo o tempo que nos enganara. O tempo é um monstro que nos marca para sempre, que nos consome, que nos fere. As suas cicatrizes nunca irão sarar. Precisava de tanto! E o tempo iria deixar?

Comecei a caminhar. Não olhei para trás. Não queria encarar o Alazão, não queria que aquela aparição repentina me afecta-se mais do que já o fizera. Seria verdade? E o calor que me atravessava, que me queimava por dentro, que agitava todas as minhas memórias? ... E aquela visão vermelha, aquele passado, aquele…

Acelerei o passo, queria fugir de mim… foi quando ouvi aquele rosnar surdo. Olhei sobre o ombro e vi o Lobo. O beiço ligeiramente soerguido, os caninos sobrepondo o lábio, a baba assomando, os olhos agora abertos, um olhar que me atravessava, e um som surdo, cavo, ameaçador.

Mas eu sabia que não era uma ameaça, era apenas um aviso, um pedido de regresso, uma ajuda, um caminho, uma força. Sorri, continuei. Eu e o Lobo sabíamos.


(continua)

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