E agora? Que fazer?
Estava ali, de pé, olhando o Lobo
que dormitava, junto da pedra onde me sentara, naquela planície amarelada, de
poeira fina e chão duro, aquela planície onde tanta vez encontrara o sonho,
onde tanta vez recusara, onde a felicidade me tocava ao de leve e fugia envolta
em nuvens de pó, em correrias loucas, acompanhada pelo som cavo de tantos
cascos.
Mas tudo fazia sentido agora; o
desejo, a espera, o sacrifício, a teimosia, a recusa, a promessa, a determinação.
Tudo se alinhava, o nevoeiro que envolvia todas as recordações, dissipara-se,
tudo estava mais claro, o mistério desfez-se, vi!
Este “novo” Alazão, este cheiro,
a visão de momentos passados, tinham trazido a verdade, a razão de tudo o que
fizera, de cada loucura, do mastigar das entranhas, da espera interminável, do
adiar, da esperança, das desilusões.
Revi outra planície, também de
terra dura, coberta de uma poeira vermelha, muito fina, cheia de pegadas,
marcas de cascos nas suas correrias, onde não havia pedra nem Lobo, onde
encontrara aquele Alazão que me fascinara, coberto daquela poeira que lhe dava
traços de dragão. Relembrei o laço com que o aprisionei, relembrei como o
soltei depois, todas as dúvidas e medos de uma mulher-menina, todas as hesitações,
a fuga.
Agora percebo que o “meu” Alazão,
não foi mais que uma substituição, uma transferência, um engano, um tentar
esquecer.
Tudo isto apenas porque virei
costas a uma “talvez” felicidade, a uma “talvez” paixão, a um “talvez” prazer,
a uma “talvez” realização.
Todos os sonhos são cheios de
muitos “talvez”. Este nem sequer os teve porque tudo recusei. Foi a minha
culpa, a minha imaturidade, cada um de todos os medos, a incerteza de cada
“talvez”, que me ficou a roer por dentro, que me enganou quando julguei ter
esquecido, quando o substituí por outra imagem que me pareceu igual,
inconscientemente, maldosamente para me martirizar, como que para espiar esse
meu passado.
E agora estava ali, olhando o
Lobo, depois daquele encontro com um outro Alazão que regressara, no
desassossego de quem não sabe prever o futuro, fazendo voltar a incerteza da
adolescência, o medo no descrever da próxima curva, o cansaço antes de
enfrentar a ingreme subida, que um passado longínquo tinha deixado por fazer.
Abanei-me.
Aquela menina insegura já não
existia (ou pelo menos eu não queria que ela existisse). Vou em frente! Desta
vez vou tentar, dê por onde der, não vou recusar a procura daquele amor que
podia ter tido. Vou lutar para que o sonho volte e os meus braços se enrosquem
outra vez naquele pescoço altivo. Quero voar, quero fechar os olhos e ver
aquele dorso coberto pela poeira de outra planície, quero sentar-me no vento e
percorrer cada momento ao contrário, criar uma certeza sobre cada dúvida
enraizada, sujar as mãos, voltar a sentir o arfar de cada peito tocado,
deixar-me levar, deixar-me levar.
E agora?
Agora tinha de pensar, não
chegava tentar ignorar todo o tempo que nos enganara. O tempo é um monstro que
nos marca para sempre, que nos consome, que nos fere. As suas cicatrizes nunca
irão sarar. Precisava de tanto! E o tempo iria deixar?
Comecei a caminhar. Não olhei
para trás. Não queria encarar o Alazão, não queria que aquela aparição
repentina me afecta-se mais do que já o fizera. Seria verdade? E o calor que me
atravessava, que me queimava por dentro, que agitava todas as minhas memórias? ...
E aquela visão vermelha, aquele passado, aquele…
Acelerei o passo, queria fugir de
mim… foi quando ouvi aquele rosnar surdo. Olhei sobre o ombro e vi o Lobo. O
beiço ligeiramente soerguido, os caninos sobrepondo o lábio, a baba assomando,
os olhos agora abertos, um olhar que me atravessava, e um som surdo, cavo, ameaçador.
Mas eu sabia que não era uma
ameaça, era apenas um aviso, um pedido de regresso, uma ajuda, um caminho, uma
força. Sorri, continuei. Eu e o Lobo sabíamos.
(continua)
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