sábado, 11 de outubro de 2014

A Savana – Uma estória de amor



A Savana – Uma estória de amor

O Lobo de pêlo negro, continuava deitado na sombra da pedra, que aflorava o lago de água barrenta e malcheirosa, ladeada de terra gretada, jorrando o calor que o sol abrasador por ali depositou. A seu lado já não estava a Loba que protegia, que tantas vezes alimentava e que sempre ali dormia. A Loba tinha-se assustado, farta de tanto calor, das sedes enormes, do cheiro da água daquele charco barrento, do balançar dos horizontes escondidos pelo tórrido sol, sempre, mirrando corpos, queimando esqueletos, murchando árvores, ervas, secando asas, destruindo quem se atrevia a desafiar a Savana ou não a compreendia.

A solidão do Lobo não o amedrontava, não era a primeira, sempre fora um solitário, mesmo quando uma fêmea o acompanhava, mesmo no meio da alcateia que liderava, nas caçadas, nas caminhadas, oferecia o corpo nas lutas, sofria todas as feridas mesmo quando não lutava por si, mesmo quando a luta não era sua. As feridas sarava sozinho. O sangue que lambia, o ardor da cicatriz, ajudavam a manter viva a sua força, ajudavam a manter o brilho, a ferocidade do seu olhar, ensinavam-lhe novos truques, davam vida nova às mandíbulas com que matava.

A Savana inóspita era a sua casa. Respeitava as suas leis, os seus segredos, os seus mistérios e, a Savana agradecia-lhe deixando-o viver, ensinando-lhe os truques da sobrevivência, enfraquecendo os seus adversários de luta, protegendo as fêmeas que amara. Aprendera que a Savana é cruel, que mata sem dó nem piedade, aprendera que para sobreviver ali, tinha de ser como ela, igual nos ódios, duro como as suas rochas, feroz como os seus vendavais, abrasador como o sol que o queimava. Aprendera que a Savana tinha segredos, muitos segredos de ódios, de caçadas, de lutas, de mortes, de tantas mortes enfrentadas olhos nos olhos ou construídas na traição e na mentira. Mas a Savana guardava também amores, muitos amores, escondidos em bolas de sabão, flutuando muito acima dos olhos, mesmo depois de terem terminado.

Por vezes esses amores voltavam, reocupavam os seus corpos antigos, reviviam ou murchavam. A bola de sabão desaparecia, fazia-se sabor, outra luz que se não via e soprava, juntava-se à brisa quente e aumentava. O Lobo conhecia cada uma daquelas bolas de sabão, estavam ali companheiros de caçadas, inimigos mortais, fêmeas lindas que com ele se haviam cruzado, as presas que matara, as que poupara, as que nunca vira. Conhecia aqueles amores, os seus fantasmas, as frustrações, os desenganos, os momentos de delírio, as vitórias assinaladas, as derrotas, as bandeiras caídas, os soldados mortos, os temporais, a seca, a morte, cada despedida.

O Lobo estava ali, na sombra que o ajudava a suportar o que lhe faltava de solidão, de saudade, de sonho adiado, do momento vivido a correr, do abandonar, do desistir, de cada luta, do ardor da ferida que ainda não parara de sangrar.

A Savana não. A Savana não descansava, não dormia. A Savana preparava-se, preparava-o para outra surpresa, desenhava naquele chão ressequido, cheio de troncos mortos e ervas queimadas, mais um capítulo, mais uma folha cheia de momentos, de desafios. Mas o Lobo era desconfiado, muito desconfiado. Tinha aprendido que essa era uma das suas armas mais eficazes, a que melhor o defendia. Não acreditava, não confiava, não se entregava, não investia sem garantir que se não enganava, estava sempre alerta a qualquer movimento de tudo o que o circundava, a cada cheiro, a cada rodar do vento.

E por ser assim, por desconfiar das próprias patas, das imagens que enxergava, da água que o charco lhe oferecia, o Lobo inquietou-se, sentiu quem se aproximava, adivinhou um calor, mas continuou ali deitado, sem pestanejar, disfarçando o tremor, a desconfiança, dissimulando o seu estado de alerta.

Por ali, deitados noutras pequenas sombras, estavam outros lobos, outras fêmeas, outros predadores, a gazela que respeitara, leões, leoas douradas, as suas lobas, as vidas paradas, as outras mexidas. O calor não deixava ninguém mexer, todos esperavam embora ninguém soubesse o que se passava. O cheiro chegou-lhe, inundou as narinas, despertou-o, desassossegou-o mas não o demonstrou. Nenhum músculo se mexeu, o lombo que oscilava ao ritmo de cada respiração, continuou como adormecido, mas nos olhos semicerrados rasgou-se um leve brilho, e desse brilho nasceu uma arma apontada ao horizonte vazio.

E no horizonte misturado com o chão que oscilava, subiam vapores, cheiros de um corpo que não se avistava, oculto p’la enorme distância, disfarçado no bambolear das ervas altas, abafado no gritar de troncos que se partiam. Mas o seu cheiro aumentava, já nada o disfarçava, invadindo aa narinas do Lobo, estendido, inerte, e um arrepio percorreu-o, sentiu-se na pelagem coberta de pó, sentiu-se em quem o provocava e no cheiro lhe respondeu.

A distância transportou cada apelo, de doce vestiu a brisa, cada sopro era uma carta, cada cheiro deixou de ser ameaça, e os cheiros misturaram-se, nasceram flores nos olhos que a Savana não queimou, borboletas imaginárias voaram junto do Lobo, afagaram-lhe a pelagem poeirenta que o vestia de cinzento.

Então, no horizonte abriu-se uma silhueta que a pouco e pouco se aproximou, desenhando-se nos olhos semicerrados que a seguiam. Cresceu, cresceu, e fez-se Loba, linda, sensual, na leveza dos passos, no ondular do dorso, na altivez da cabeça, nos olhos rasgados que mudavam de cor.

Era negra, luzidia, feita nuvem que deslizava do horizonte até ali, insinuantemente bela. O Lobo viu os olhos, viu o brilho, viu a leveza, viu a subtileza daquele olhar que se coloria, que o desafiava, que o convidava a entrar, a descer naquele interior misterioso, que o convidava a desvendar cada segredo que continha, que o convidava a partilhar.

O Lobo não estava habituado a tal, sentia-se livre de o fazer sem convite, de devastar interiores sombrios, de vasculhar segredos em olhares ameaçadores, de se aventurar no desconhecido de olhos assassinos desafiando todos os instintos, de penetrar olhares de virgens e desassossegar as suas canduras, mas aquele era bem diferente na sua luz, no confiar que lhe oferecia. A Loba aproximou-se, tocou, enroscou-se junto a si, aproveitou a sombra do lobo e da pedra, olhou a água barrenta do charco malcheiroso, e ficou.

A Loba misturou-se no cheiro, deixou que os olhos voassem apanhando cada nuvem que passava, escolheu-o, ofereceu-lhe sonhos que já haviam sido lutas, bebeu venenos para que não se arriscasse, fez-se parede, tornou-se chão, armou-se de asas, abriu-se em caminho, iluminou-se em horizonte.

O Lobo provou o que antes fora fel, transformado agora num doce do mais puro mel, colheu as flores que desconhecia, abertas na Savana que não as permitia, sacudiu o pó que sobre o pêlo abundava, mostrou brilhos que apagara, entregou-se no fogo que antes queimara.

Solitário como sempre fora, o Lobo partiu para a caçada, procurando a presa que se encontrasse tresmalhada, circundou os cheiros para não se trair, mudou ventos, enfrentou sóis, andou, correu, armou mais um salto, matou e comeu. Saciou-se na água barrenta do charco que fedia, dispôs a carcaça que sobrara junto da pedra onde sempre regressava e viu. A Loba não fugira, não o abandonara, permanecia ali estendida, abandonada ao tempo, coberta do pó que se soprara, nas rajadas quentes que a Savana lhe enviara.

Resistira, não sucumbira, a Savana não lhe tocara, respeitando a espera a que se sujeitara. 

O Lobo aproximou-se, arrastando os restos ensanguentados, arrastou-os até à Loba que com os olhos agradeceu. Lambeu os ossos, roeu os restos da carne que sobrara, respirou o cheiro da caçada, o odor do macho misturado no pêlo, saboreou-o, sentiu-lhe a solidão.

Aqueles olhos perdidos no abarcar do agreste horizonte da Savana, encontraram-se, e o brilho que se via penetrante como fogo, sucumbiu, adoçou-se, e os lábios esconderam os dentes, as línguas mostraram-se vermelhas, pingando o calor que se fazia. Na calma enraizada no próprio chão, o Lobo vibrou e a Loba cismou com a sombra de dois corpos, juntos, abrigados na pedra, cúmplices na fome, juntos como soldados enfrentando a sede, águias voando alto em cada prazer. Mas não cismou sozinha porque o Lobo a adivinhou.

Subitamente o sol arrefeceu, o brilho que feria os olhos das feras, baixou, a água do charco que fedia, clareou, mas os olhos do Lobo e os olhos da Loba cresceram num brilho que explodiu, as pelagens reluziram enganando o pó que as cobria, passos silenciosos uniram-nos numa caçada, numa caçada onde não havia presa, nem ódios, nem dissimulações ou enganos, uma caçada feita de caminhar lado a lado. O Lobo sentiu. A Loba fez-se companhia, fez-se cumplicidade, fez-se espera, fez-se caçada, fez-se olhos, fez-se Savana.

A Savana percebeu, sentiu os aliados que se sopravam como o vento, os brilhos dos olhos que alcançavam o horizonte ondulante, o bailado dos corpos que caminhavam lado a lado, a cumplicidade da presa partilhada, o enroscar na sombra da pedra que ali surgia, a sede saciada na poça malcheirosa, o desafiar dos inimigos, o lamber das feridas de cada dorso, e adivinhou de cada um as vitórias, de cada um o seu ficar.

A Savana juntou este segredo, e tudo o que era improvável, impensável, no vibrar dos momentos da erva ressequida, nas rachas de cada tronco partido, no sibilar do vento seco e quente, no sol abrasador que tudo comia. Juntou tudo e guardou. Com ele, o mistério da Savana aumentou.

Na Savana, tudo o que a respeita, sobrevive, tudo o que a respeita cresce, tudo o que a respeita fica para sempre, escondido no seu mistério.

O eterno mistério da Savana repetiu-se mais uma vez, misturado numa estória de amor.

1 comentário:

Maria disse...

Maravilhosa!Esta estória de Amor.
Abraço poeta.