sexta-feira, 17 de outubro de 2014

“A Cega”



Estava ainda calor, neste quase final de tarde. Mantinha-me ali, debaixo da arcada de pedra que protegia a esplanada do café onde me encontrava. A garrafa de água gelada tinha chegado a meio e já não era tão gelada, nem me refrescava como devia, mas sempre me ia enganando a sede.

No cinzeiro, uma beata mal apagada, soltava um fino fio de fumo branco, que se perdia na vertical sem se desviar, no ar parado que não sentia vento nem brisa para o desassossegar. Distraidamente ia olhando o fumo enquanto subia, apenas para verificar aquilo que já sabia.

No passeio passava gente, gente anónima como eu, que ninguém conhecia, na azáfama diária, no vai vem casa-trabalho, trabalho-casa, ou apenas por distracção, para ver caras ou respirar um novo ar.

Ouvi um bater que não era passos, um bater metálico contra a pedra daquele chão. Olhei, vi a cega que caminhava, com a bengala que lhe protegia o passo e no chão marcava compasso.

Era baixa, muito baixa, pouco mais que a altura que eu ocupava sentado, na mão direita a bengala, na esquerda um saco. Andava rapidamente, muito mais rapidamente do que eu alguma vez imaginaria que um cego conseguiria fazer. Cada passo era uma decisão de um momento, acompanhando a parede que a ladeava. As mesas da minha esplanada eram um obstáculo no seu caminho. Levantei-me para a avisar, mas nem um único passo tive tempo de dar.

Virou, marcou um angulo, decidiu e passou, passou ao lado das cadeiras abandonadas, das mesas, como se visse, como se o vento que não havia lhe tivesse sussurrado o aviso que eu queria.

Em frente da porta do café traçou outro rumo, e entrou bem o meio da porta.

Ouvi-a dizer lá dentro: “Boa tarde! Queria um café! Obrigada”.

Passados breves minutos, assomou da porta por onde entrara, a bengala começou no ritmo, martelando o chão. Passou sob a arcada, apanhou o passeio, virou e seguiu, seguiu na sua velocidade de cruzeiro, aquela que era muito superior ao que eu imaginaria.

Segui-a com os olhos, desceu a rua, desapareceu numa esquina.

Fechei os olhos, tentei imaginar o que via – NADA. Continuei de olhos fechados, pensei… então imaginei o que sentiria. Os olhos iluminaram-se por dentro, apenas luz, mais nada, sem sombras, sem arcadas, sem sol, apenas calor. Senti o fresco da garrafa que me fazia companhia.

Então senti um respirar, e outro, e outro. Senti o chão que me segurava, senti a cadeira que me apoiava, senti o vento que não fazia, senti a mesa que nem me tocava

Nessa altura, de olhos fechados. Vi !

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