Eu sei que prometi, eu sei que
disse:
“Então toda a fúria cresceu em
mim, explodiu como enorme rio de lava que tudo incendeia. Senti-a rolar cá
dentro, mastigar as minhas entranhas, atropelar princípios, sonhos, esperanças.
A ingratidão, a indiferença, feriam-me. Porque raio o libertara se não passava
de um alazão negro, igual a tantos outros, belo como tantos outros, apetecível
como tantos outros. Decidi. Nunca mais voltaria ali.”
Sei que sorri quando a tua mão
poisou no meu ombro e disseste “Vens querido?”, sei que aceitei a mão, segui a
mão que me oferecias, mas não consegui, não aguentei este fogo que me consumia,
a dúvida que ficou a queimar-me por dentro, porque por dentro não queria
acreditar, imaginei que não fosse possível, que me enganara, que a certeza que
tive com toda a certeza, aquela que ofendera os meus olhos, afinal era apenas
engano despeitado, um curto momento enganado na poeira do terreiro.
E voltei aqui. O chão continuava
igual. Tantas pegadas desenhadas no pó que se acumulava, algumas sumidas,
outras misturadas, pisadas, repisadas, as que deixara nas correrias que
enfrentei, algumas permaneciam ainda ali, mas mesmo que se perdessem, que o
vento as apagasse, tinha-as gravadas dentro do peito. O bosque continuava
alinhado num dos lados do horizonte, verde de copas altas e frondosas, com
sombras que se confundiam com ilusões, e tantos olhares perdidos nos seus
troncos.
A pedra onde me sentava, também
ficara ali, firme no lugar em que a deixara. Aproximei-me para me sentar, como
sempre fazia quando chegava àquele lugar. Mas mais uma vez a pedra não estava
sozinha. Avistei aquele negro que tão bem conhecia. O Lobo estava ali deitado,
como se me esperasse, mesmo sem saber. Mas na verdade mal se via. Sentei-me,
sobre a pedra que escaldava.
O alazão negro, que tanto amava,
apareceu. O seu galope ritmado atingiu-me no peito como se me espezinhasse.
Senti o coração apertar, mordido pelos dentes que nem se dignaram relinchar.
Estava sozinho, vinha sozinho, não trazia a égua branca, não trazia nada,
apenas aquele pelo luzidio, húmido de suores da cavalgada, de trotes, de
galopes, das fêmeas, da fêmea que faltava.
Levantei-me, na mão o laço de
corda amarelecida ganhou forma, cresceu, fez-se mão que rodopiava, preparada
para prender, preparada para envolver aquele pescoço altivo que a bela cabeça
sustentava. Passou por mim a trote, já nem corria e, a crina roçou o laço que
tanto temia, sem o ver, sem se importar, sem sequer olhar. Não se esquivou, não
se desviou, não tremeu, nem sequer me empurrou.
Passou por mim, pela pedra, pelo
Lobo que nem viu, o Lobo que dormitava e o ignorou, porque já sabia, já
persentia, com os olhos transparentes que tudo olhavam, escutando todos os
silêncios que ecoavam. Passou por mim e fugiu.
Então o Lobo levantou-se como se
ouvisse os meus pensamentos – “"Sabes?... Mesmo eu amando-te...um dia
também tu podes ficar sozinho..." – porque era como se o pensasse em voz
alta, como se me quisesse convencer de alguma coisa, como se aquela minha
inépcia para o prender fosse um defeito, embora não o fosse, mas que me roía,
que me roía.
A cabeça do Lobo roçou-me, senti
que me animava, que me dizia que a verdadeira força estava em mim, que o que
havia já decidido era o caminho, mesmo quando me roía, mesmo quando me doía.
Olhei o Lobo que tinha olhos
transparentes, senti o Lobo que tinha olhos transparentes. Na minha mente,
palavra a palavra, foi-se formando uma frase, a princípio sem me aperceber,
depois mais clara, depois a transbordar, até que a frase se gritou nos meus
ouvidos.
“Tudo é uma questão de hábito,
primeiro ESTRANHA-SE, depois ENTRANHA-SE.”, E a frase fazia todo o sentido.
2 comentários:
Arrepiada!...
Com todo o carinho, mas mesmo assim a brisa soprou!
Beijo
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