Noite calma. Noite quente, seca,
abafada, que me atormentava como todas as noites quentes, secas e abafadas. Atormentava,
porque me custa respirar, como me custa em todas as noites quentes, secas e
abafadas, afasta de mim as musas, a concentração, não oiço os hinos
inspiradores abafados pelos sopros de calor das noites quentes, secas e
abafadas.
Precisava de uns olhos para
olhar, uns olhos que me deixassem penetrar nos obscuros segredos de uma alma
qualquer, segredos suficientemente segredos para que valesse a pena, olhar e
ver, sentir as emoções, as dores, as cores dos amores proibidos, das paixões
desejadas e recolhidas no sonho pintado de azul e rosa, ou a tempestade
provocadora e uma traição, cheia de sexo, inundada de sexo, numa cama
amarrotada de um quarto de hotel.
Ou quem sabe sentir uns dedos que
procurassem os meus, que envolvessem os meus, que brincassem na palma da minha
mão, que seguissem as linhas que se chamam Vida, Cinturão de Vénus, Destino,
Marte, Anel de Salomão, e que se rissem, segredando-me um destino que nem quero
saber.
Até podia ser uma boca, uma
qualquer boca que tivesse lábios, lábios vermelhos que pudesse beijar, lábios
que mostrassem o gosto de chocolate, ou de canela, ou quem sabe, apenas
soubessem a ELA. Sim isso também bastava, já me daria assunto, arrefeceria um
tal calor, traria o ar que me faltava naquela noite quente, seca e abafada.
Mas a noite quente, seca e
abafada, negava tudo, musas, hinos, sopros de inspiração, olhos que pudesse
penetrar, dedos para me enlear e com eles tecer uma história, boca de lábios
vermelhos, mesmo que só tivessem o sabor DELA, nada, mesmo nada, e já estava a
ficar farto e com dificuldade de respirar.
Olhei à minha volta. Árvores,
bancos, um cão lá ao fundo, sentado, as pedras do passeio alinhadas por
habilidoso artesão que as juntara e urdira aquela teia, o alcatrão negro
manchado de óleo, mais bancos, o escuro… e as pessoas? Onde estavam as pessoas?
E de entre essas que me faltavam, onde estavam as que procurava, A que
procurava, a MULHER?
NADA, mesmo nada, não havia
vivalma. Apenas aquele calor e a minha dificuldade em respirar. Que se dane!
Escolhi um banco e sentei-me. As traves estavam quentes. Senti o seu calor
atravessar-me as calças. Fiquei ali na esperança que o cão se aproximasse e me
deixasse entrar pelos seus olhos, certamente meigos e puros, como os de todos
os cães que encontramos sentados na rua, nas noites quentes, secas e abafadas,
abandonados pelos donos que não quiseram ter dificuldade em respirar.
Então ouvi passos, o ritmo de
dois saltos que martelavam as pedras brancas do passeio, como se o martelo do
artesão tivesse voltado para as recalcar. Mas essa melodia parou.
Levantei-me, dei meia volta
enquanto os olhos iam percorrendo a calçada, em busca dos saltos que me haviam
despertado, pedra a pedra, como se as contasse, até que apareceram uns pés. Os pés
tinham uns sapatos de tiras pretas, e os sapatos de tiras pretas tinham saltos,
bem altos, e tinham sido eles a entoar aquele cântico que me chamou, a martelar
as pedras que precisavam ser marteladas outra vez, marcadas que estavam para as
ouvir.
O meu olhar percorreu as tiras
negras, os pés, os tornozelos. Apareceu a perna. Aí morri. As pernas eram
perfeitas, torneadas, lindas no seu bronzeado doce. Apareceram os joelhos e um
pouco acima a saia. Fiquei mudo, selado, preso, não conseguia afastar os olhos
daquelas pernas, umas pernas que falavam comigo como se fossem olhos, que num
sonoro silêncio me gritavam os segredos de alguém que as possuía.
Os saltos voltaram a martelar a
calçada, passo a passo, pé a pé, com as tiras a afagar aquela pele que se
prolongava pelas pernas de onde não era capaz de desviar o olhar. E as pernas
aproximaram-se, uma roçou o meu joelho, invadiu o intervalo que os avizinhava. Do
seu lado surgiu a mão da dona das pernas, dourada também pelo sol e um pulso
cheio de pulseiras de prata.
A mão dourada apertou a minha,
senti um beijo no pescoço, o mordiscar do lóbulo da minha orelha, enquanto uma
voz doce sussurrava – “Vem, vou refrescar-te, não mais terás dificuldade em respirar nas noites quentes, secas e abafadas, vou deixar-te penetrar os meus
olhos, ler os segredos que se escondem em todos os meus recantos, vou
recitar-te todos os poemas que escrevi nos meus silêncios, cantar-te a música
que precisas para adormecer. Vem.”.
A boca quente afastou-se, a mão
dourada largou a minha, escorrendo-me por entre os dedos, o seu joelho
desocupou o espaço que os meus tinham deixado e os sapatos de tiras rodopiaram,
enquanto os saltos continuavam a martelar cada pedra que pisavam.
Segui-a, ou antes, segui aquelas
pernas que me fascinavam, perfeitas como nunca antes vira, até que uma porta se
abriu e nos deixou passar. Estou deitado numa cama de lençóis brancos, lençóis
que ainda não estão amarrotados de amor, nem de sexo, nem de paixão. Ao meu
lado está uma mulher que já descalçou os sapatos de tiras negras, que já tirou
o vestido que a cobria até um pouco acima dos joelhos, joelhos que pertencem àquelas
pernas, as pernas de onde não consigo desviar os olhos.
Esta música estava a tocar enquanto escrevi este texto, por isso fica aqui.
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