Passeava, como sempre passeio
quando preciso pensar, ordenar as ideias, tomar decisões, resolver problemas
que me atormentam. Passeava naquela noite de inverno, empapado já pela chuvinha
miudinha que teimava em cair, pisando as poças sem sequer notar, sem nada
sentir. A água corria-me pelo queixo, pingava para dentro do casaco,
aninhava-se sobre as pestanas que pesavam, pesavam porque ali ficavam. O
cigarro apagado no canto da boca permanecia esquecido, esperando a mão que o
descartasse.
Começou a levantar-se um vento
frio, uma nortada igual a tantas outras que aquele Inverno já tinha trazido,
levantando folhas que voavam em remoinho, projectando cada pequena gota de
chuva como balas, uivando.
No meio da chuva, das folhas
arrancadas, levantou um pedaço de papel, protegido que estivera decerto, nalgum
recanto. Vi como voava em círculos, baixando e levantando como se conduzido por
hábil piloto, sem tocar o chão que luzia. Tantas voltas deu que veio colar-se
no meu peito. Deitei-lhe a mão para dele me desfazer, afastei-o do peito,
amarrotei-o, mas quando os meus olhos poisaram naquela bola já meio molhada,
pareceu-me ver versos que dele assomavam.
Parei, endireitei o melhor
possível aquela folha escrita a azul. Eram de certeza versos, mas ler não
consegui. A noite era negra, a escuridão muita e a chuva. Dobrei-o em quatro e
depois outra vez. Envolvi-o num lenço e logo foi parar à minha algibeira. Já em
casa coloquei-o entre dois trapos velhos e sequei-o como pude. A escrita estava
já meio sumida, debutada, com manchas de azul espalhadas a cobrirem letras, mas
mesmo assim consegui copiar para um caderninho que tenho, este poema:
“Tentei ser feliz, tentei
E até o consegui ser um pouco,
Tropeçando aqui, levantando-me
além,
Lutei, morri, levantei-me, sorri
E nunca mais confiei.
Continuo assim em frente,
Olhando o espelho que me esconde,
Não quero mais traições,
Amigos falsos, espertalhões,
Não confio em ninguém,
Nem em mim.
Tenho medo de sofrer mais,
Tenho medo de morrer mais,
Tenho medo de traição demais,
Saí daqui amor, espanta também a
amizade,
E embora pareça crueldade,
Egoísmo ou maldade,
É o caminho que tracei para mim.
Foi-me apontado por falsos
amigos,
Amantes traidores, espertos,
Aproveitadores.
Este é o meu caminho,
Não tentes afastar-me dele,
Por muito que sejas sincero,
Não quero,
Por muito que me ames,
Não quero,
Por muito que chores, implores
De joelhos,
Não quero.
Não quero mudar!
Não quero mudar!
Afasta de mim os teus olhos,
Cala para sempre a tua voz,
Afoga tua saudade,
Despede a amizade…
Raios!... Estou a fraquejar.
Porque apareceste assim de
repente,
Porque me vieste tentar,
Logo agora que me sentia tão bem.
Vai-te embora, sei que és
sincero,
Mas eu não quero, quero
Mas não quero.
Viste meu grande estúpido,
Já não sei o que digo,
É verdade, bem verdade,
Obrigado por seres meu amigo.”
Estava assinado. Ainda bem que o
encontrei, ainda bem que o li, ainda bem que o senti. Tudo era verdade, tudo
recordei e percebi.
Ainda sentia aquela paixão.
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