A savana mantinha-se, igual, como
terra queimada de tantos sóis escaldantes, que a secavam encolhendo os
espinhos, retorcendo os troncos, afastando as aves, queimando as asas das
borboletas que dela se acercavam, ondulando nos calores de verões intermináveis,
secando os charcos, semeando a terra de mil gretas que se estendiam e a
percorriam, feitas serpentes que se multiplicavam em cada curva, em cada
mudança de direcção, chocando com pedras que a decoravam interrompendo o plano,
criando leves contrastes, sombras efémeras naquela enorme solidão.
Apenas os fortes sobreviviam ali,
não pelo músculo, não pela pelagem, fosse cinzenta, branca ou da cor da
tempestade, não pela fome que suportavam. Sobreviviam os astutos, os
inteligentes, os directos e tenazes na defesa, os corajosos em enfrentar aquele
enorme calor sem vacilar, conhecedores dos segredos de cada recanto, velozes, ágeis
na perseguição, vorazes predadores sem dó, capazes de matar sem pestanejar.
Na curva de uma grande pedra,
junto a um charco de água barrenta, no fresco cinzento de uma pequena sombra, o
velho lobo estava deitado. No dorso ostentava frescas cicatrizes ainda
vermelhas, de lutas recentes, de ataques e de tantas defesas, mas mesmo assim
continuava sem fugir, mesmo fraco e confuso sobrevivera mais uma vez,
sobrevivera e ficara mais forte, mais sábio, mais matreiro, mais perigoso nas
suas astúcias, pronto para outras armadilhas desarmar, outros caminhos
percorrer nos mistérios que aprendera a ler naquela interminável e perigosa
savana.
Os outros predadores
respeitavam-no, talvez porque o temessem na astúcia que conheciam, talvez
porque afinal ele fazia parte daquela terra de ninguém, talvez por saberem que
nascera com ela, que crescera com ela, que com ela lutara contra o calor
abrasador daquele sol que todos os dias os desafiava, na sede, na fome, na
distância… da última luta conheciam a fêmea, os truques, as tentações
enfrentadas, as falsas verdades, a cegueira atacada, do mapa das feridas liam
as derrotas, as vitórias, os sulcos deixados pelo sangue vertido. Mas
resistira, não desistira, lutou até se superar, até reinventar o fresco que não
se pedia, defendeu as crias que não era suas, abriu caminhos que não eram seus
e quando se distraiu, por pouco não morreu.
Naquela sombra que lhe pertencia,
o lobo lutava contra o instinto que o castigava, lutava contra o gosto do
sangue que tingia os dentes afiados da sua boca, recusando procurar na vingança
o prazer de mais uma vitória merecida, não por medo, não por cobardia, apenas
porque não queria cravar a carne que amava e que lhe fugia.
Era uma paz de sabores estranhos,
no imenso contraditório que se anicha no amor que roça o ódio da desilusão. Era
uma paz sofrida na vontade de um sonho inacabado, vivido sofregamente,
esquecendo as próprias fomes, ignorando as verdades demonstradas, enevoadas nas
mentiras desprezadas e desculpadas.
O pensamento mantinha-o
.
O pensamento paralisava-o.
Absorto que estava, mal se apercebia
daquele vulto que se avolumava, no horizonte que o cegava tremulante no calor
emanado, nos brilhos reflectidos, nas sombras projectadas em cada curva daquele
chão pardo, sem nada, sem emoção.
O vulto cresceu, aproximando-se
lentamente guiado pelo cheiro do barro húmido, da água anunciada, na secura da
boca tão desejada, que o vício da sede tornava irrecusável para qualquer um. O lobo
esqueceu as vinganças, as dores das cicatrizes, as imagens que bailavam na
mente e fixou o vulto elegante demais na ostentação de toda a sua sensualidade.
Viu, observou e percebeu a Leoa,
linda na pelagem que luzia apesar da poeira que a cobria. Percebeu que era
diferente, que com ela trazia coragem dos perigos que enfrentara naquela
viagem, que o olhar era quente, claro no seu discurso, transparente nos seus
medos, nos seus fantasmas, em tantas fantasias, no fogo escaldante de todos os
desejos.
Esperou, a Leoa acercou-se do
charco. A sua imagem apareceu na superfície, castanha pelo barro que se
dissolvia, mas a Leoa em nada com aquilo se parecia. Os olhos pararam. A Leoa
era Negra, toda Negra, completamente Negra. Negra no casaco que vestia, Negra
nos olhos, Negra, apenas Negra.
A Leoa Negra bebeu, bebeu, até
saciar o fogo que a consumia, parou, ergueu a cabeça e viu o que a rodeava. Viu
a pedra, conheceu o Lobo, leu a astúcia, percebeu o coração que se via, os
encantos adormecidos, o desafio do olhar profundo, os recantos misteriosos de
muitos amores, a sabedoria feita de experiência nos erros emendados.
A Leoa Negra trazia consigo a
esperança, a vontade de encontrar a felicidade eterna escondida no olhar de um
Leão Branco que a perseguia. O Leão Branco estava faminto, ardia em desejo,
mordia o próprio focinho e rugia. Tantas vezes a atacara já, ardendo em ciúme,
deixando-lhe cicatrizes que escondia dentro dos olhos com que me via.
O Lobo sabia. O Lobo conhecia. O
Lobo leu todos os segredos, descobriu medos, vasculhou incertezas, viu desejos,
saboreou calores de muitas fogueiras, afagou fragilidades.
O Lobo é um provocador, o Lobo é
um sedutor, o Lobo é insaciável, o Lobo é perigosamente insinuador nos
silêncios que planta em cada som, na melodia que compõe em cada uivo surdo, no
olhar que vê sem se denunciar, na descrição de um saber vivido. A savana educou
o Lobo como ninguém.
A Leoa Negra partilhou carinhos,
ofereceu sensualidade, mostrou os desejos mais secretos, sentiu a verdade que
lhe foi oferecida, roçou-se no Lobo, incendiou o Lobo, apagou o que restava da
fêmea apetecida, substituiu-se ao desejo, acordou outros, mostrou com verdade
as suas verdades, atirou com sinceridade as suas sinceridades, uniu-se sem medo
porque o sentiu aceso, ficou ali.
A Leoa Negra aproveitou o que
restava da sombra onde o Lobo descansava. Deitou-se encostada e a boca juntou
num beijo secreto que o Lobo aceitou e retribuiu.
Estranha a união que os uniu. Estranho
o mistério da Savana que se repetiu.
2 comentários:
Não sei se percebi bem a metáfora deste texto. Fico à espera da continuação, porque tem que haver continuação numa savana que não dorme, apenas descansa.
Claro que haverá continuação, porque a Savana não dorme... e o Lobo também não !!
Enquanto o Lobo alimentar este mistério, a Savana não dormirá... nem quem nela se aventurar.
Beijo
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