quarta-feira, 17 de julho de 2013

“ P O R Q U Ê ? !”



O meu dia não fora nada bom, muito trabalho, mais do que aquele que seria normal existir num dia normal, com problemas normais como sempre acontece, mas não, os problemas começaram a surgir logo pela manhã, mais graves, muito mais graves do que é costume e as reuniões começaram a ser adiadas, passaram para os intervalos que tinha marcado na minha agenda na tarde deste dia. Tudo cheio até às sete e meia da tarde.

E o dia foi passando devagar, demasiadamente devagar, com pequenos intervalos, em que pequenas frases que recebi, foram acendendo pontos de luz aqui e ali.

As reuniões de tarde foram duras. Dar com uma mão e tirar com a outra, não é tarefa fácil, mas são os espinhos de quem tem de gerir pessoas, pessoas que têm dificuldades e a quem pouco posso fazer para que a situação melhore. Não é tarefa fácil, sabendo que têm razão no que me disseram, concordando com todos, e porque sou frontalmente contra o que fui obrigado a propor. Mas passaram, acabaram, cumpri apenas aquilo que me foi imposto comunicar.

Já era tarde quando saí. Dirigi-me para o carro estacionado a cinquenta metros, abri a porta, entrei e sentei-me. A chave ocupou o lugar na ignição, coloquei o rádio que de imediato começou a tocar uma canção de amor na estação em que estava sintonizado. Recostei-me no banco e, com a mão esquerda ajustei a inclinação das costas. Fechei os olhos e assim fiquei.

Passaram alguns minutos e comecei a ser inundado por uma sensação estranha que ocupava cada pedaço do meu corpo. Senti-me flutuar como se já não tocasse o banco, desmaterializado, como se o meu peso se tivesse transformado em gás. Atravessei o tejadilho do meu carro, estava a vê-lo por fora, elevando-me, pairando… Não era capaz de abrir os olhos, não era capaz de voltar a pesar, era impossível voltar para baixo e por isso deixei.

Vi rostos que sorriam, rostos de quem conhecia, revi momentos passados, de alegrias, de brincadeiras, daqueles em que a verdade é mensageira, em que a sinceridade manda, eu que a vida é apenas o que é, e na sua dureza mostramos quem somos sem máscaras, nus, completamente nus, em que o carinho e a ternura são importantes, em que o ouvir e o dizer podem ser algodão doce que se partilha ou lâmina de espada que fere quem se aproxima.

Mas não nestes momentos não encontrei a espada, vi apenas verdade, vi que simplesmente vivera, recebera, dera, investira, importara-me, comigo se haviam importado, em que a felicidade não fugira.

Repentinamente deixei simplesmente de flutuar e o corpo ganhou velocidade, inclinou-se para a frente e arrancou como autêntico míssil com alvo marcado, teleguiado por mão invisível que me arrastava, arrastava fazendo a velocidade aumentar, a altitude aumentar, o céu aumentar, o Sol que se punha aumentar porque para ele me dirigia, a sua direcção era o caminho.

Passei nuvens, enormes como grandes novelos de lã e algodão, vi luzes, vi mares, mares enormes que sob mim se estendiam a perder de vista. Vi ventos, vi tempestades, vagas alterosas, vi gritos, achei amores, senti paixões.

A roupa que vestia sentia-a molhada e por isso a despi. Também para que precisaria dela, ninguém me encontraria ali e, mesmo que me encontrassem que mal faria. Decerto estariam nus como eu.

Rapidamente vi aproximar-se uma sombra longínqua, a princípio apenas uma mancha naquele horizonte de cores difusas, depois mais nítida, cada vez mais perto, cada vez mais nítida, cada vez maior. O mar acabava ali ancorado em enormes praias orladas de florestas verdes. Deixei o azul para trás e casas começaram a  tomar forma, a velocidade abrandou, senti-me descer.

Passei pelos seus meios, as janelas começaram a assomar pessoas, as ruas passaram a passear pessoas, as pessoas passaram a olhar corpos. Sem saber porquê quem me sustinha, quem me guiava, atravessou-me por uma janela aberta e suavemente depositou-me sobre um lençol que cobria uma cama. Fechei os olhos mas continuei a ver.

Na semi-luz que o iluminava, vi um vulto, não estava sozinho, alguém estava ali, alguém me olhava. Lentamente aproximou-se de mim. Acercou-se mais e vi uma bela mulher, desconhecida, mas que parecia conhecer à muito e me invadiu de uma estrema serenidade.

Ao chegar perto de mim deitou-se. Deitou-se apenas a meu lado. Uma das mãos percorreu demoradamente o meu corpo, não conseguia mexer-me, algo me prendia, algo me mantinha ali à sua mercê, mas eu também não queria fugir. Sentia-me protegido por aquelas mãos, por aquele olhar, por aquele silêncio. Então parou e disse:

- Estás tão frio, o teu corpo está gelado… e nada mais disse. Olhei-a nos olhos, eram calmos, lindos, penetrantes, quentes, inundados de mistérios, escuros como carvão, brilhantes como diamantes expostos ao sol. Rapidamente despiu tudo o que a cobria e o seu corpo desenhou-se no espaço e com ele me cobriu.

Os meus braços acordaram, ganharam asas, ganharam fogo que se propagou a toda a cama e nos cercou num enorme abraço. O seu olhar cruzou o meu e ficou, ficou preso, fiquei preso e tudo o que sentia por ali se escoou, fugiu de mim, mas de volta recebi tudo o que sentia por mim. O enorme silêncio entrava-me pelos ouvidos, pelas narinas, pelas mãos tão despertas agora, tão irrequietas.

Aninou-se em mim, senti cada curva do seu corpo ocupar todos os meus espaços, como se fosse líquido, mesmo sendo carne, carne quente, apetecível. Ouvi uma melodia que surgiu não sei bem de onde, quando ou porquê. sim conhecia cada nota, reconheci cada palavra, cada tom, cada instrumento, a batuta do maestro.

Olhei-a nos olhos, vi o negro crescer, senti, senti bem fundo e perguntei:

“ P O R Q U Ê ? !”

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