Não havia nenhuma janela, vigia,
ou fosse lá o que fosse que permitisse ver a pista. Sim tinha-a visto antes de
subir os seis degraus da escada que a ligavam ao avião onde agora seguia. Não
era preta de alcatrão, nem cinzenta de cimento, era uma mistura de tudo com
rastos de borracha de pneus nas travagens ou nos arranques. Pareceu-me lisa,
mas agora que saltitava no meu banco, vi como me enganara. A luz que iluminava
o compartimento, onde eu e o meu amigo seguíamos, entrava pela porta que nos
ligava ao cockpit, onde o piloto segurava o que fora uma manche de um velho
avião de combate.
Os três motores roncavam, um
ronco surdo, e a trepidação abanava tudo como se o avião se quisesse desfazer
completamente. Nós íamos sentados de lado, por isso a aceleração fazia com que
nos inclinássemos para trás, tornando-se difícil não escorregar sobre o banco
que não tinha qualquer estofo. Comodidade não era requisito necessário para
quem ia fazer o que iriamos fazer.
Após alguns segundos, sentimos o
“nariz” do avião levantar e a mão do piloto acelerou mais os motores, que
corresponderam aumentando o ronco e a vibração, e esta vibração começou a
implicar com os músculos das minhas pernas, fazendo-me primeiro sentir um
formigueiro e logo depois, os músculos acertaram o ritmo e abanavam-me como se
fizesse parte daquele monte de sucata que se elevava, que subia no ar.
Pensei que o piloto ia equilibrar
logo e deixar de subir, mas não, 200 pés e a subir, 500 pés e a subir, 1000 pés
e a subir, e o motor parecia que se ia destruir, 2000 pés e os meus ouvidos já
zumbiam, 2500 pés e os meus pés já sentiam o frio, o oxigénio já não era o
mesmo, mais raro, quase que o tínhamos que procurar. O respirar ali cansava,
mas não nos podíamos esquecer que tínhamos que o fazer.
O meu amigo puxou duas máscaras
que estavam na parte de baixo do banco, deu-me uma, e fez-me sinal para a
colocar. Encostei-a à cara e inspirei, senti o fresco do oxigénio que me
invadia os bocados dos pulmões que não o tinham encontrado antes. Duas, três,
quatro, cinco vezes inspirei, e fui acometido de uma certa euforia.
“3000 pés”, gritou o piloto,
“preparem-se, 30 segundos para salto”. O meu colega deu-me uma pequena botija
de oxigénio, com uma máscara ligada, que pusemos. Duraria para uns três ou
quatro minutos, no máximo, dependeria do ritmo da respiração. Aproximámo-nos da
cauda, e alguém abriu a porta. Vi as nuvens que deixávamos para trás, “quinze
segundos”, gritou o piloto.
Deixei de pensar, lá estava a
porta mesmo ali, era um buraco para o infinito, um infinito que nunca
enfrentara, não àquela altitude, com nuvens que escondiam o chão… “dez
segundos”, silêncio, apenas o barulho dos motores que já nem ouvia, as cócegas
na sola dos pés, uma mão nos laterais da porta, óculos, máscara… “cinco…
quatro… três … dois… um… vai, vai, vai…
Senti que me tinham dado uma
palmada nas costas, fechei os olhos, puxei-me para afrente à força de braços e
saltei. Já o tinha feito outras vezes, afinal eram só mais mil ou mil e
quinhentos pés, mais uns segundos e um pouco mais de velocidade.
Abri os olhos logo e entrei numa
nuvem. Senti humidade, uma humidade fosca, opaca que me envolvia, como se
atravessasse um nevoeiro que passava por mim. Senti a aceleração e fiz o que
devia para contrariar um pouco, mas apenas um pouco, a vertigem da queda, de me
sentir uma bala que cruza o espaço que a separa do alvo, aumentava de tal
maneira a adrenalina que recebia, que apenas pensava em testar a minha própria
coragem, ou inconsciência, sei lá. Perigo, medo? Não, já me tinham abandonado. Talvez
no primeiro segundo me tivessem atormentado.
A nuvem acabei de atravessar e vi
o chão, as casas pequeninas, o verde dos campos. Deslizava formando um angulo
com o chão, não caía como uma pedra morta e a velocidade aumentava. Sabia que
dentro em breve chegaria aos duzentos quilómetros por hora, perto do momento de
abrir o pára-quedas pendurado nas costas, puxar a argola que da alça pendia.
Entrei noutra nuvem, mas apenas
demorei um segundo e tudo ficou claro outra vez. As casas estavam maiores, o
verde mais verde, o chão mais perto, alinhei os braços com o corpo e a
velocidade aumentou. Sentia a pele da cara a tentar fugir-me como se já não me
pertencesse. Senti a força de dominar a queda, de descrever uma pequena curva
para alinhar com o verde que achei mais apetecível.
Comecei a contar mentalmente os
segundos até o anel puxar. Os meus olhos tinham-se transformado em objectiva
que rodava e aproximava tudo, uma potente objectiva, porque as casas eram agora
muito maiores, quase via as pessoas a assomar das janelas, e a lente rodava,
rodava à mesma velocidade que eu descia, as casas cresciam, o chão aproximava,
aproximava, aproximava.
A mão agarrou na argola com
força, mas não puxei, olhei para o lado e vi o meu companheiro, um contei,
dois, o pára-quedas dele abriu, três, quatro… quase me esquecia, puxei com
quanta força tinha. Senti um forte puxão que contrariava tudo, que me segurava,
que me abrandava para que não me estatelasse. Abanei….
Depois estabilizou, mais uns segundos
e os pés tocaram o chão, dobrei os joelhos, enrolei. Conseguira e quase me
esquecera que não era um pássaro.
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