Era uma enorme planície verde,
atapetada da mesma cor, com flores que a salpicavam aqui e ali, como pequenas
pinceladas de um qualquer pintor, que não quis que ela fosse toda igual,
perfeita, imaculada. Os leves desníveis não chegavam para quebrar a monotonia
da planura que se estendia até onde a vista podia alcançar.
A espaços tinha árvores que
violavam as suas entranhas, roubavam os seus sucos mais profundos, devolviam ao
ar o que lhe tiravam, largavam no vento as suas sementes que a mesma planície
iria guardar.
O céu que se via, rodeava-a,
misturando o seu azul lá longe, com o verde da planura, desenhando uma leve
linha castanha que mal se via, de tão afastada do alcance, que olhos humanos
poderiam alcançar.
Quando se olhava a planície bela,
verde, viçosa, lisa, pensávamos como era bom olhar dali o Sol, que a iluminava,
inteira, sem esconderijos, sem obstáculos, mostrando tudo, mesmo tudo, sem
segredos. Como poderia haver segredos ali, onde se poderiam esconder se tudo o
que existia se poderia ver.
Enquanto percorria a planície fui
encontrando verdades, verdades das árvores de cresciam, com folhas também
verdes que as vestiam, flores brancas, frutos amarelos, suculentos, doces
demais para se perderem, verdades das aves que voavam sobre a minha cabeça,
araras verdes que me contavam histórias que haviam decorado, ouvidas de tantas
bocas desaparecidas, e que repetiam para que as ouvisse e aprendesse, verdades
das borboletas multicoloridas que voavam aos esticões, aproveitando o vento, e
que mostravam a verdade da mudança de uma lagarta feia e verde.
Mas na planície encontrei uns
olhos, olhos belos e sorridentes como tantos outros que já havia encontrado,
olhos que já me haviam mentido, olhos que já me haviam enganado, olhos que me
prometeram amor, prazer, felicidade mas na verdade eram enganos, olhos que
choravam e não sentiam, olhos de traição.
Mas na planície encontrei uma
boca, desenhada no cinzel de um escultor, belos, perfeitos, vermelhos, iguais a
tantos outros lábios que já encontrara, que me haviam beijado com paixão e
depois me mordiam com ódio, lábios que haviam juntado letras em palavras,
construído frases, dito juras de amor que afinal não passavam de juras, lábios
que se trincavam para mostrar desejo, mas que depois recusavam o beijo da
paixão.
Mas na planície encontrei um
corpo, sensual, lindo, elegante, provocador nas suas insinuadas curvas,
perfeito, como já havia encontrado outros corpos igualmente sensuais,
igualmente provocadores, igualmente perfeitos, que afinal não eram assim tão
sensuais, nem perfeitos, porque o provocador era falso, o provocador era
passageiro, o sensual era ensaiado, o perfeito era inventado.
Mas na planície encontrei um
espírito, um espírito que habitava o corpo que encontrei, sensual e belo, que
animava a boca que encontrei desenhada pelo cinzel do escultor, que escrevia
nos olhos que encontrei sorridentes.
Então percebi que a planície
tinha segredos, muitos segredos, enormes segredos que se escondiam de quem
apenas a olhava e nada via. Mas a planície era verde e estendia-se a perder de
vista, misturando-se lá longe com o azul de todo aquele céu e fundia-se naquele
risco castanho, invisível para mim.
E vi quando o percebi, que todos
esses segredos lhe davam o sabor especial que lhe faltava, que quebrava a
monotonia do verde plano, dos tufos de flores iguais e das árvores espaçadas.
Por isso abracei o corpo, senti o
enorme calor que emanava, absorvido que fora de outros sóis que o haviam
abraçado, beijei a boca e ouvi as palavras que me contou, as vidas por que
passou, os desgostou que sofreu, os prazeres que começou e acabou, e olhei os
olhos.
Quando os olhei estremeci,
estremeci porque eram negros mas transparentes, não tinham barreiras nem
protecções, pareciam a água que tudo trás para cima, que lava o que se suja,
que molha em cada lágrima. Estremeci porque não precisei aprender a linguagem
que falavam e os segredos tão bem guardados, durante tanto tempo, contaram-se
sem medo, como se a planície me conhecesse em várias vidas, como se a planície
confiasse, como se a planície fosse o meu próprio eu.
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