domingo, 23 de junho de 2013

Lembro




Quando me lembro dos anos setenta, acontece sempre ver qualquer parte de África por onde tenha andado, onde tenha aportado nas centenas de vezes que para lá fui.

Recordo o sol abrasador, a humidade que nos punha pegajosos como se nos faltasse banho há semanas, o suor a escorrer da testa, das faces, as chuvas torrenciais que acabavam tão depressa como chegavam, que alagavam tudo, que nos dificultavam a respiração, os tornados que de tão densos se viam no radar como se fossem rocha, produzindo um eco verde que se aproximava de nós velozmente, e quando chegavam rodopiantes arrasavam o que se via, arrastavam o que não se via e desapareciam no horizonte.

Recordo as gentes, os costumes tão diferentes de tudo o que estamos habituados, as comidas, os picantes muito concentrados, os sabores, os petiscos que devorávamos a qualquer hora, sem desculpa, sem dietas, sem remorsos, porque a vida ali estava sempre presa por um fio, como se fosse apenas luz o que nos segurava no lado de cá.

Lembro o que mais nos atormentava, aquilo que nos desgastava mesmo quando alegremente nos divertíamos, comíamos ou dançávamos com uma mulata esbelta, porque era mais forte que nós, estava sempre presente em todo o lado. Lembro o medo, lembro o perigo, lembro o som, lembro a morte.

E quando me lembro de tudo isto, vejo as imagens diante dos meus olhos como se ainda estivesse lá. Vejo um “zebro” a navegar, saltando sobre a ondulação do rio, vejo mais sete homens que estão sentados sobre a mesma lona do costado em que me encontro, ao meu lado o que regressará dois dias depois, cumprido que está todo o seu tempo.

O “zebro” saltita, os fuzileiros riem-se dos salpicos, estamos encharcados mas o marisco que vamos comer vale bem a pena. Gargalhadas, piadas “porcas”… oiço um zumbir, qualquer coisa passa à minha frente e quase me roça o nariz.

Lembro o zumbido, lembro a bala, lembro que matou o homem que ia a meu lado, uma única bala, um único zumbido, uma única gargalhada, apenas uma piada “porca” e ele não regressou para dizer “dever cumprido”, voltou, e no seu corpo tinha escrito “morreu pela Pátria”.

Lembro “Pátria”, uma coisa que hoje já não há.



23.06.2013

2 comentários:

Anónimo disse...

O meu comentário à pouco foi este

"Recordações, diria inquietantes, porque de certo foram muito intensas e devastadoras"

E agora pergunto eu: terá valido apena todo este sacrificio humano? Todos os traumas e as bárbaras recordações?

Beijos
DD

Eu não sou ninguém disse...

Não DD, claro que não valeram. E não foi só a guerra que fez baixas por lá.