terça-feira, 5 de agosto de 2014

Algo mudou…



Nada mudara na savana, tudo estava igual como se o tempo não existisse ali. O calor tórrido, aquele sol amarelo, os espinhos rasteiros que tudo rasgavam, as sombras que rareavam, as poucas árvores despidas, a terra poeirenta, nenhuma flor, nenhuma ave, nenhuma borboleta. Durante o dia aquele calor, na noite o frio que tudo tolhia. E o charco de água barrenta lá estava, envolto no mistério que o alimentava, mesmo quando a seca aumentava.

Nada mudara na savana que ali continuava, inexoravelmente queimando tudo o que se atrevia, tudo o que ali chegava e ficava. Só os fortes resistiam. Os outros permaneciam, os seus ossos atestavam, espalhados, amontoados, quebrados, ressequidos por aquele sol que não perdoava.

Mas alguma coisa mudara na savana, alguma coisa ali não estava igual, sentia-se, cheirava-se, adivinhava-se. Mas não era a savana, não eram as árvores espaçadas e nuas, não eram os espinhos que me cortavam, não eram as borboletas nem as aves, porque não as havia, era eu, era o outro lobo, eram as lobas brancas, eram as leoas. Uma das lobas fugira, acossada, agredida, recusando ser protegida, enganada pela liberdade falsa da savana que nada permite, que tudo proíbe, que tudo vigia, que tudo castiga.

Fugiu, sofreu, quase morreu espetada nas suas próprias garras, no caminho que escolheu como seu, afogada em miragens que lhe fugiam, em cantos que a seduziam e sem saber, sem pedir, sem imaginar, escapou, libertou-se, usou a mão que havia recusado, que a puxou, que a acordou para a verdade e a ajudou a encontrar a sua própria realidade.

As outras lobas estavam calmas, as leoas submissas. Estavam conformadas com o calor da savana, suspiravam apenas, cheiravam os machos longínquos, esperavam a sede, continham a sede, bebiam quando mais não podiam e adormeciam. Também o outro lobo não se via, afastado numa sombra que o escondia.

A sede chegara-me, secara-me a garganta e a boca cheia de pó, os espinhos tinham-me aberto algumas feridas, as corridas, as perseguições tinham-me extenuado. Precisava daquele charco, daquela água malcheirosa, precisava lavar as feridas, arrefecer o sol que teimava em queimar-me o pêlo que o negro perdia.

Vagarosamente acerquei-me, curvei-me para beber e vi-me reflectido por ali. Vi-me como era, vi-me como sou, vi-me e senti a mudança, a frieza, o desprendimento. Vi toda a fúria, toda a vontade, toda a saudade, toda a força que me animava, todo o desalento de cada derrota, toda a alegria de cada vitória, toda a raiva de cada mentira.

Mergulhei a cabeça, a boca, os olhos e a imagem desapareceu, a água inundou-me a boca, esquecera já como sabia mal, mas precisava beber, engolir, ignorar. E bebi, bebi, bebi. A sede desapareceu, a força voltou, os olhos voltaram a ver. Sim, os olhos começaram a ver mas não me vi. Olhei a superfície barrenta que ondulava e calmamente voltava ao seu lugar e o que vi não era meu. Eram sombras que se juntavam, eram pequenas imagens que ondulavam, confusas, misturadas com o vermelho do barro, eram olhos que choravam e reconheci.

Reconheci e relembrei o caminho, revivi momentos, adivinhei a mão que procurava, reconstruí um futuro igual, ouvi o pedido de ajuda mergulhado nas gotas de água que respingavam. Vi.
Li os olhos, não me enganava, estava tudo ali, outra vez, com outro perigo que os ameaçava, outros desafios, outras liberdades fingidas de uma savana que não perdoava.

O mistério da savana continuava, em tudo igual, ameaçador para cada predador, terno para a gazela que se atrevia.

Procurei uma sombra e fiquei. Olhei o horizonte ondulante feito morte, repleto de distancia, inundado no mistério que tão bem conhecia.

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