Nada mudara na savana, tudo
estava igual como se o tempo não existisse ali. O calor tórrido, aquele sol
amarelo, os espinhos rasteiros que tudo rasgavam, as sombras que rareavam, as poucas
árvores despidas, a terra poeirenta, nenhuma flor, nenhuma ave, nenhuma
borboleta. Durante o dia aquele calor, na noite o frio que tudo tolhia. E o charco
de água barrenta lá estava, envolto no mistério que o alimentava, mesmo quando
a seca aumentava.
Nada mudara na savana que ali
continuava, inexoravelmente queimando tudo o que se atrevia, tudo o que ali
chegava e ficava. Só os fortes resistiam. Os outros permaneciam, os seus ossos
atestavam, espalhados, amontoados, quebrados, ressequidos por aquele sol que
não perdoava.
Mas alguma coisa mudara na
savana, alguma coisa ali não estava igual, sentia-se, cheirava-se,
adivinhava-se. Mas não era a savana, não eram as árvores espaçadas e nuas, não
eram os espinhos que me cortavam, não eram as borboletas nem as aves, porque
não as havia, era eu, era o outro lobo, eram as lobas brancas, eram as leoas. Uma
das lobas fugira, acossada, agredida, recusando ser protegida, enganada pela
liberdade falsa da savana que nada permite, que tudo proíbe, que tudo vigia,
que tudo castiga.
Fugiu, sofreu, quase morreu
espetada nas suas próprias garras, no caminho que escolheu como seu, afogada em
miragens que lhe fugiam, em cantos que a seduziam e sem saber, sem pedir, sem
imaginar, escapou, libertou-se, usou a mão que havia recusado, que a puxou, que
a acordou para a verdade e a ajudou a encontrar a sua própria realidade.
As outras lobas estavam calmas,
as leoas submissas. Estavam conformadas com o calor da savana, suspiravam
apenas, cheiravam os machos longínquos, esperavam a sede, continham a sede,
bebiam quando mais não podiam e adormeciam. Também o outro lobo não se via,
afastado numa sombra que o escondia.
A sede chegara-me, secara-me a garganta
e a boca cheia de pó, os espinhos tinham-me aberto algumas feridas, as
corridas, as perseguições tinham-me extenuado. Precisava daquele charco,
daquela água malcheirosa, precisava lavar as feridas, arrefecer o sol que
teimava em queimar-me o pêlo que o negro perdia.
Vagarosamente acerquei-me,
curvei-me para beber e vi-me reflectido por ali. Vi-me como era, vi-me como
sou, vi-me e senti a mudança, a frieza, o desprendimento. Vi toda a fúria, toda
a vontade, toda a saudade, toda a força que me animava, todo o desalento de
cada derrota, toda a alegria de cada vitória, toda a raiva de cada mentira.
Mergulhei a cabeça, a boca, os
olhos e a imagem desapareceu, a água inundou-me a boca, esquecera já como sabia
mal, mas precisava beber, engolir, ignorar. E bebi, bebi, bebi. A sede
desapareceu, a força voltou, os olhos voltaram a ver. Sim, os olhos começaram a
ver mas não me vi. Olhei a superfície barrenta que ondulava e calmamente
voltava ao seu lugar e o que vi não era meu. Eram sombras que se juntavam, eram
pequenas imagens que ondulavam, confusas, misturadas com o vermelho do barro,
eram olhos que choravam e reconheci.
Reconheci e relembrei o caminho,
revivi momentos, adivinhei a mão que procurava, reconstruí um futuro igual,
ouvi o pedido de ajuda mergulhado nas gotas de água que respingavam. Vi.
Li os olhos, não me enganava,
estava tudo ali, outra vez, com outro perigo que os ameaçava, outros desafios,
outras liberdades fingidas de uma savana que não perdoava.
O mistério da savana continuava,
em tudo igual, ameaçador para cada predador, terno para a gazela que se
atrevia.
Procurei uma sombra e fiquei.
Olhei o horizonte ondulante feito morte, repleto de distancia, inundado no
mistério que tão bem conhecia.
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