Diz-se:
“Que de noite todos os gatos são pardos”,
Porque a noite tudo “aparda”,
Na noite a escuridão, é apenas escuridão
A sombra confunde, misturando o que já foi
Cor, e o que era belo e brilhante,
Pouco mais será que contorno,
Linha que se perde, no emaranhado
De suspiros, nos gemidos, nos rangeres,
De chãos, pisados por olhos perdidos
Na escuridão.
A vela que sobre a minha mesa,
Iluminava a folha meia escrita,
Tremulava, e a sombra
Que a minha mão projectava, parecia
Dançar uma melodia que eu não ouvia.
Pela janela, a brisa que entrava fazia a vela hesitar,
E a chama encolhia, esticava, esticava, encolhia,
E a sombra subia, e a sombra descia, descia,
Descia e desaparecia, voltava e crescia,
Crepitava, a chama crepitava e eu ouvia,
As palavras escorriam do meu aparo,
E o aparo arranhava, e a palavra luzia,
O som do verso urgia e surgia,
Escorregava, corria sobre a mesa, percorria
E assentava na linha da folha presa.
Absorto naquela dança onde nada tem a ver
Com talento, escutando o escorregar
Algo brilhou, sob a minha mão senti um frio
Que me atravessou,
Olhei e vi
Uma pequena mão de cristal
Muito esguia… e estava fria;
Pudera, fazia tempo que não escrevia.
Afastou-se, e o seu indicador dobrou,
Chamou e olhei enquanto a pena agarrou,
E a pena ganhou vida, o aparo escorreu
Toda a tinta, salpicou-me os olhos,
Misturou-se com o ar que respirava,
Invadiu-me os pulmões, tossi,
Soprei, sons misturei às letras
E o poema surgiu do vazio.
Dedos de cristal soam,
Interpretam, tocam, frio,
Frio é vidro que entre eles não existe,
Nas palavras que se ouvem
Caem gotas de incertezas misturadas,
Como avezinhas no ninho desasadas,
Ensaiando voos nas lembranças que ainda
Não nasceram,
Encorajadas pelo cantar da borboleta
De asas de papel,
Que as desafia.
E o sopro do vento, a chama
Da minha vela apagou,
A mão de cristal se escondeu
Ou na escuridão se dissolveu,
Mas amanhã, quando a chama voltar
Os seus dedos transparentes,
Tornarão a dançar.
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