Quando cheguei, a noite
aproximava-se a passos largos, enquanto as sombras se arrastavam pelo chão a
perder de vista, chocando umas com as outras, transformando a realidade que por
sobre elas crescia. O bosque, ao fundo, continuava verdejante com o sol a ladeá-lo. Toda a paisagem era repousante e bela. Apenas
uma leve brisa soprava, tão suave que nem poeira levantava.
Naquele fim de tarde de Verão,
tudo continuava na mesma, as árvores lá longe, o terreno seco e poeirento onde
me encontrava, centenas de pegadas de cavalo, pedras espalhadas por aqui e por
ali, a outra maior onde me costumava sentar, só talvez um pouco de calor a
mais.
Dirigi-me para ela, como sempre
fazia quando ali vinha (e vinha sempre recordar o dia em que o domei). Sentei-me
sobre a pedra que me esperava, coberta de pó, atestando a minha ausência.
Sentei-me e esperei. Eu sabia que o alazão sempre vinha, mesmo desconhecendo se o
fazia por saudades, para agradecer o meu acto de coragem ao devolver-lhe a
liberdade ou apenas porque queria. Mas quando se ama não se quer saber, as
dúvidas, as perguntas caladas, as respostas ignoradas de nada valem, não se
lhes sente a falta.
E eu transbordava amor, vertia-o
como garrafa que se desfaz em mil pedaços, como hemorragia impossível de
estancar. Era como tentar parar a luz com um vidro, onde a transparência não é
mais do que isso mesmo. Transparência.
O sol ia descrevendo o seu
caminho, sem se importar comigo. Já pouco faltava para que desaparecesse,
escondido pela linha do horizonte distante. O meu olhar fixou o bosque,
procurando o alazão negro, mas o sol baixo plantava estrelas nos meus olhos e
pouco via. Baixei a cabeça para os proteger daquela agressão, a natureza estava
a castigar-me decerto.
Pensei levantar-me, dar meia
volta e abandonar aquele espaço que me era tão querido, não esperar. Se o
alazão não viesse? Se não se mostrasse? Que desilusão seria. Os meus olhos,
instintivamente, voltaram a olhar o bosque, o sol escondera-se deixando uma
aura vermelha no céu, mas toda aquela beleza me era alheia.
Então vi o pó que se levantava lá
longe. O meu coração quase parou, levantei-me de um pulo, apetecia-me correr ao
seu encontro. A mancha negra avolumou-se, ganhou forma, destacou-se da nuvem
que a envolvia. Esperei que me visse, esperei que me olhasse, esperei que
parasse.
Mas não, passou por mim como um
furacão, com o dorso luzidio que já montara coberto de suor. Passou e não
parou. Segui-o com o olhar. Vi a égua branca em que se roçou, ouvi o relinchar,
percebi o emparelhar, assisti à sua partida, morri quando desapareceram
novamente no bosque.
Então toda a fúria cresceu em mim,
explodiu como enorme rio de lava que tudo incendeia. Senti-a rolar cá dentro,
mastigar as minhas entranhas, atropelar princípios, sonhos, esperanças. A ingratidão,
a indiferença, feriam-me. Porque raio o libertara se não passava de um alazão
negro, igual a tantos outros, belo como tantos outros, apetecível como tantos
outros. Decidi. Nunca mais voltaria ali.
Pensei no meu cavalo negro,
também era belo, amigo fiel que sempre me queria. Liberto nunca me fugira,
escolhia sempre ficar, oferecia-me o seu dorso para cavalgar levando-me nas
asas desse prazer. Nunca recusara o cubinho de açúcar que lhe oferecia. Porque me
dividia?
Senti uma mão no ombro. Olhei. Vi-te
sorrir enquanto dizias: “Vens querido?”.
2 comentários:
É isso, é o fim. O vazio, mas uma grande vontade de seguir em frente e enfrentar o nada. Reinventar, mas nunca mais voltar a um lugar onde o alazão desfila a sua felicidade e realização com as escolhas que faz todos os dias num caminho que a determinada altura também escolheu. Essa felicidade ofende, tortura, atormenta, humilha. Basta! Não sei lidar com isto, não volto lá. Estou muito contente com esta conquista interior.
Ainda bem amiga.
Que o que aqui escrevi te sirva para relembrar e ajude a continuar, em frente... "sempre em frente"!
Beijo
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