sábado, 10 de agosto de 2013

...A cruzar a linha que se não via.


Estava sempre sentado naquele banco de jardim, de manhã, bem cedo, como se já estivesse acordado à muito, mas continuasse adormecido no sonho que acabara de sonhar, de olhos presos para além de mim, de olhar que me atravessava sem me ver, olhando a flor que do outro lado assomava, meia escondida no meio da relva mal tratada.

A mão segurava o cabo de vassoura velha, quebrada, lembrando a cabeça de lobo que outrora encimava a bengala vendida e que fora de prata, perdida entre o tempo e as necessidades.

Aquele velho, tão velho, acompanhava os meus passos em cada manhã, obrigando-me a passar por ali, para o lembrar, sem lhe falar porque não respondia, deixando que cada árvore o dissesse por ele, que cada flor no seu perfume me visse, que a brisa me acariciasse.

O indicador estava sempre esticado, apontando o vazio que eu via, como se me indicasse alguém escondido junto da flor amarela, vermelha, branca, azul, tanto fazia.

Tornou-se um hábito, um vício, uma obrigação, ir, passar, olhar, ver, cruzar a linha vazia que desenhava com os olhos, com o indicador esticado que apontava o vazio, onde eu já não procurava ver mas que sabia, que mesmo assim existia feito caminho, desenhado na luz que cada manhã iluminava, bem cedo, sempre cedo.

Ontem passei, olhei e não vi, o banco estava vazio, o velho de olhar perdido e dedo indicador apontando, segurando o cabo de vassoura velho e partido, não estava lá cedo, bem cedo. Não podia cruzar a linha imaginária que não tinha princípio naquele dia. Parei, fiquei, contei o tempo, passou o tempo e nada, o velho não aparecia.

Cheguei-me junto, hesitei, mas decidi. Sentei-me. Não tinha bengala encastrada em cabeça de lobo que fora prata, nem cabo velho de vassoura, partido, nem olhar vazio, mas o meu dedo indicador esticou-se, apontou o nada, segui-o com os olhos e vi a flor amarela, vermelha, branca, azul que longe se via, assomando atrás da relva mal-arranjada.

Fechei os olhos e quando os abri senti que o meu olhar estava vazio, sem ver, sem enxergar, sem cheiro, sem luz, sem cor. Então vi-me passar por ali a cruzar a linha que se não via.

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