A carta
Sobre a mesa meia desarrumada,
onde as canetas se misturavam com as tampas, lápis, borrachas, folhas de papel
escritas, cheias, vi uma folha branca, completa, sem nada.
Peguei-lhe, virei-a, e na outra
face nada também. Era uma folha virgem que esperava que as palavras sobre ela
chovessem e lhe dessem vida, alguma utilidade, ou que na sua falta, um lápis,
um pau de carvão, umas mãos, uns dedos, fizessem surgir as sombras, riscassem
outros riscos, e que das formas surgisse a mensagem, o esboço, e lhe dessem o
sentimento que branca não tinha.
Pensei o que lhe faria e diante
dos meus olhos desfilaram imagens, vi momentos, sonhei todos os sonhos,
imaginei-me noutros mundos cheios de cores, onde o calor aparecia em cada
nascer do sol, em cada noite adormecida, em cada paixão sentida, em cada
momento vivido. Vi rostos, vi olhos conhecidos, vi segredos já sabidos, vi a
luz que tanto me aquecera, a estrela que me guiara e aquele sorriso…
Segurei um lápis e um carvão. Via
aquele sorriso que sempre me desafiava, que a minha mão já desenhara, que os
meus olhos conheciam de cor, as duas covinhas no canto da boca, os lábios, a
frescura.
Ia voltar a desenhar, a pintar,
agora completo, com todos os traços que o formavam, cravados dentro de mim e
que queriam sair e contar… contar o que tinha, o que era, como mesmo na noite
era linda.
Mas não, em papel não, merece
mais que uma simples folha de papel, apenas a tela é nobre para o fazer. Vou antes
escrever.
Poisei o lápis e o carvão e
procurei algo com que escrever. Encontrei várias canetas mas só uma escrevia. Está
bem, se só tu escreves paciência, terás que cumprir o que pensei, porque quero
que saiba o que sinto, quero que saiba porque a quero, quero dizer-lhe porque
choro, mostrar-lhe as notas desta melodia que agora estou a ouvir.
Olhei outra vez a folha para
começar, para decidir o que pôr em primeiro lugar. O que sinto não, isso já
sabe, já lhe disse, já o escrevi, já o gritei, não isso não. O meu sonho, a
minha esperança talvez, mas para quê? Claro que sabe do sonho, de toda a esperança
que todos os dias me faz escrever, para que o dizer outra vez, e se isto sabe
tão bem, também conhece as lágrimas que chorámos, sabe como as secámos, como
nos ajudámos.
Sim ela sabe tudo isto, estou
fartinho de lhe dizer, aos gritos ou baixinho com os olhos espalhando tanto
carinho. As cumplicidades contaram-nos tudo o que havia para contar e os olhos
desvendaram os segredos que há tanto tempo escondíamos.
Dobrei a folha branca em três, vinquei
bem, abri o envelope, humedeci a orla e fechei-o. Virei-o e deitei-o de costas.
Escrevi nome, morada completa, remetente. Abri a gaveta e um selo que encontrei
serviu. Vesti o casaco. Saí.
Encontrei o marco do correio
vermelho no fim da rua. A sua boca rectangular engoliu a carta-branca com
destinatário e remetente.
Será que ela vai perceber o silêncio
do que escrevi.
2 comentários:
Fantástico diálogo interior com a caneta e com a folha de papel.
Diálogo profundo de silencio, renuncia, aceitação mais ou menos compreendida....
A folha de papel, o carvão do lápis e o escritor que se atira em fúria a um mar de significados para expôr os seus sentimentos...
Absolutamente maravilhoso!
Parabéns
Bjos
DD
Obrigado DD, pelas tuas palavras e pelo que significam de incentivo.
Um beijo grande para uma GRANDE AMIGA.
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