quinta-feira, 27 de junho de 2013

A carta

A carta


Sobre a mesa meia desarrumada, onde as canetas se misturavam com as tampas, lápis, borrachas, folhas de papel escritas, cheias, vi uma folha branca, completa, sem nada.

Peguei-lhe, virei-a, e na outra face nada também. Era uma folha virgem que esperava que as palavras sobre ela chovessem e lhe dessem vida, alguma utilidade, ou que na sua falta, um lápis, um pau de carvão, umas mãos, uns dedos, fizessem surgir as sombras, riscassem outros riscos, e que das formas surgisse a mensagem, o esboço, e lhe dessem o sentimento que branca não tinha.

Pensei o que lhe faria e diante dos meus olhos desfilaram imagens, vi momentos, sonhei todos os sonhos, imaginei-me noutros mundos cheios de cores, onde o calor aparecia em cada nascer do sol, em cada noite adormecida, em cada paixão sentida, em cada momento vivido. Vi rostos, vi olhos conhecidos, vi segredos já sabidos, vi a luz que tanto me aquecera, a estrela que me guiara e aquele sorriso…

Segurei um lápis e um carvão. Via aquele sorriso que sempre me desafiava, que a minha mão já desenhara, que os meus olhos conheciam de cor, as duas covinhas no canto da boca, os lábios, a frescura.

Ia voltar a desenhar, a pintar, agora completo, com todos os traços que o formavam, cravados dentro de mim e que queriam sair e contar… contar o que tinha, o que era, como mesmo na noite era linda.

Mas não, em papel não, merece mais que uma simples folha de papel, apenas a tela é nobre para o fazer. Vou antes escrever.

Poisei o lápis e o carvão e procurei algo com que escrever. Encontrei várias canetas mas só uma escrevia. Está bem, se só tu escreves paciência, terás que cumprir o que pensei, porque quero que saiba o que sinto, quero que saiba porque a quero, quero dizer-lhe porque choro, mostrar-lhe as notas desta melodia que agora estou a ouvir.

Olhei outra vez a folha para começar, para decidir o que pôr em primeiro lugar. O que sinto não, isso já sabe, já lhe disse, já o escrevi, já o gritei, não isso não. O meu sonho, a minha esperança talvez, mas para quê? Claro que sabe do sonho, de toda a esperança que todos os dias me faz escrever, para que o dizer outra vez, e se isto sabe tão bem, também conhece as lágrimas que chorámos, sabe como as secámos, como nos ajudámos.

Sim ela sabe tudo isto, estou fartinho de lhe dizer, aos gritos ou baixinho com os olhos espalhando tanto carinho. As cumplicidades contaram-nos tudo o que havia para contar e os olhos desvendaram os segredos que há tanto tempo escondíamos.

Dobrei a folha branca em três, vinquei bem, abri o envelope, humedeci a orla e fechei-o. Virei-o e deitei-o de costas. Escrevi nome, morada completa, remetente. Abri a gaveta e um selo que encontrei serviu. Vesti o casaco. Saí.

Encontrei o marco do correio vermelho no fim da rua. A sua boca rectangular engoliu a carta-branca com destinatário e remetente.





Será que ela vai perceber o silêncio do que escrevi.

2 comentários:

Anónimo disse...

Fantástico diálogo interior com a caneta e com a folha de papel.

Diálogo profundo de silencio, renuncia, aceitação mais ou menos compreendida....

A folha de papel, o carvão do lápis e o escritor que se atira em fúria a um mar de significados para expôr os seus sentimentos...

Absolutamente maravilhoso!
Parabéns

Bjos
DD

Eu não sou ninguém disse...

Obrigado DD, pelas tuas palavras e pelo que significam de incentivo.

Um beijo grande para uma GRANDE AMIGA.